Copenhague Zero Grau - Mulheres do outro mundo
O corredor da pensão é estreitinho como uma pista de aeroporto vista de mil metros de altura, resultado das dez cervejas Carlsberg Elephant dessa noite na discoteca. Vai ser difícil aterrissar na cama.
Saiu do Golfo pra estágio na matriz da indústria de produtos farmacêuticos. Vai a gerente nacional bem cedo, sem dúvida nenhuma. Bom, o estágio era o objetivo oficial, santo, aceitável, pra essa viagem à Europa. Não contou a ninguém, no entanto, a verdade. Veio foi dormir com todas as escandinavas, essas louras fáceis das lendas. As cristãs são fáceis, diz-se no Deserto. São todas umas rameiras, dizem as avós. Não honram a marido, dizem os parentes viajados. As tias previnem. Apesar de não terem nossas virtudes, as mulheres de cabelos claros têm artifícios perversos.
Há que tomar cuidado pra não se perder no redemoinho dos feitiços delas, elas sabem coisas, sabem fazer zonzeira na cabeça de macho solteiro, casado, noivo, seja lá o que for. Fazem filtros mágicos e conseguem prender até rapaz de muito boa família. Há casos de moços daqui, com tudo pra se casar bem e criar família, que foram para aquelas terras e ficaram embeiçados por elas. Nunca mais voltaram. Tinham até noiva comprada, casamento marcado. Feitiço. Cuidado.
No pub, as minas o tratam de igual pra igual, que estranho. Pagam suas bebidas, vão elas mesmas ao balcão buscar, perguntam como é a vida na riqueza do petróleo, se interessam por seu país, respondem, têm opinião, são muito interessantes essas mulheres. Só não pode é suportar esse olhar firme com que o encaram. Que timidez lhe dá, isso é que é o custoso de conversar com elas. As de lá não fazem isso, não dão medo na gente, nem os olhos delas a gente vê. Estão cobertas de panos, de véus, embrulhadas pra presente, barracas negras que andam e fazem compras. Servirão na cama e na cozinha e não falarão a estranhos. Serão vistas sem véus pelos maridos, pais e, no fim da fila, existindo deles, pelos escravos eunucos. Estão garantidos os maridos em seus direitos. Afinal de contas, uma mulher custa, ao dólar de hoje, mais do que uma televisão a cores e quase o preço de uma Toyota de quatro portas e ar condicionado.
É a vigésima-sétima noite sem mulher. Hoje, além de tudo, ainda levou um tapa por passar a mão com gosto na bunda da Inge, a gostosa da Inge, a que o convidou pra jantar e pagou a conta ainda por cima. Que estranhas essas mulheres! Os antigos têm razão. Há que tomar cuidado com elas. O que não entende é como não topa com as louras fáceis, se já rodou tudo quanto é boteco dessa Sodoma gelada. Elas devem existir, o dono daquela importadora em Jeddah tinha treze amantes loucas por ele em Estocolmo. Onde diabos se meteram elas? Claro, e só questão de paciência, e só questão de dar com o ninho das galinhas de pelos amarelos. Achou, e só botar a mão nos ovos, que é fritada certa.
É a vigésima-sétima noite sem mulher. Saiu, tomou dez cervejas Elephant, das fortes. Um táxi o deposita na porta da pensão, gira a chave, o bafo quente do corredor lhe chega ao rosto gelado. Sobe degraus que não se acabam, um a um, tomando fôlego e mirando o próximo, encosta-se em paredes que se desmontam - castelos de cartas - querem é vê-lo quebrar um pescoço nessa escada. No alto do corredor, finalmente.
O corredor que divide, os quartos da pensão é fino como uma pista de aeroporto, vista lá de cima. Apesar do mau tempo, há de aterrissar, há de acertar, a pista, ha de frear a tempo, há de parquear corretamente, ninguém há de notar que o piloto está totalmente bêbado. É um piloto muçulmano, não pode beber, é forte, resistente, não serão esses filtros mágicos fabricados por cristãos que o hão de denunciar. Dorme de roupa.
Dentro de mais três dias, finalmente, volta ao Golfo, Quando chegar, há de ir ver o pai da noiva e acertar logo o casamento. Já está tudo contratado, questão de sua decisão, já tem todos os direitos. As horas de solidão em Sodoma ficarão esquecidas, os fracassos com as louras fáceis de seu conhecido serão confirmadas e continuarão a ser as lendas fantásticas, onde ele, o herói, passará a seus filhos e sobrinhos a história das dez amantes em Estocolmo, louras incríveis, cristãs perdidas, insaciáveis.
(Copenhague, Dinamarca, set/1980)