"Criando bunda"

A expressão chula do título saiu da boca da minha mãe, irritada com briga de filhos e veio justamente no momento de maior angústia de minha vida. Em 1964, nos meus 14 anos, o papai tinha pedido a políticos uma vaga no Colégio Estadual em Belo Horizonte e já estava certo que em Pitangui eu não permaneceria no ano seguinte. Eram favas contadas para ele, para a mamãe, parentes e amigos. Eu iria morar na Tia Eugênia, irmã do meu pai, e fazer o Científico direcionado para Engenharia. Além de sair da casa paterna, ainda me direcionava para estudar Engenharia... Aquilo passaria a atormentar-me o tempo todo.

A mamãe não era desse tipo de linguagem, mas falou "bunda". Aconteceu num sábado à tarde. A Kátia, a Deborah e eu estávamos ajudando na arrumação semanal da casa: móveis fora do lugar para passar palha de aço e encerar, serviço que a mamãe passava de irmão para irmão. A mamãe coordenava o "frevo", como dizia. Até o papai trabalhava nisso: limpava os espelhos com jornal molhado de álcool, ajudava com o escovão no polimento, enquanto a Rádio Nacional do Rio de Janeiro apresentava o programa César de Alencar. A gente deve ter brigado – eu brigava muito com a Kátia – e a mamãe devia estar muito nervosa porque não era de falar “palavrão”. E "bunda", naquela época, lá em casa, pelo menos, era. O xingamento foi para mim:

- Para de brigar com as meninas, ajuda aqui, age igual homem, chega de ficar criando bunda dentro de casa!

Confesso que aquilo caiu como um raio na minha cabeça. Pode ser que criava "bunda", sim, mas trabalhava. Buscava lavagem na casa do Zé Tavares e da Maria do João Tropeiro, entre outras casas, para os porcos nossos e do vovô. Buscava, também para eles, ração no SAPS e palha de arroz na cooperativa para quando tinham ninhada. Além disso, era eu quem carregava os meninos e os levava ao farmacêutico Antônio dos Santos, quando algum passava mal ou se acidentava. Não era justa comigo. Daquele momento em diante, vi que as coisas ficavam feias. Iam me expulsar da casa paterna, assim eu interpretava. Passou a ser esse o drama de um menino de 14 anos que não queria fazer 15 longe da família.

Os dias corriam céleres no segundo semestre daquele ano de 1964 e era preciso achar uma solução. A vida era tão boa por ali, minha vida estava se ajustando devagarzinho. Tinha fundado o Clube de Regatas Brasil, ainda sem sede, mas já com receita delineada: eu iria colher pimenta no quintal do vovô, engarrafar e vender na vizinhança. Com a arrecadação das pimentas, o Clube de Regatas Brasil poderia comprar o passe do extraordinário Joãozinho do Sacramento, vulgo "Joãozinho do Saco", e estava preparado para enfrentar o Canopus, dos irmãos "Velu" Miranda (Paulo, César e Zé Luiz), e o time da Rua da Cruz, cujo presidente, Marcinho Morais, também falava em comprar outros jogadores. Já tinha o seu "Neimar", era o Diminhas, Dimas Alves de Oliveira, metódico e clássico atleta. Eram, portanto, três os times da nossa "Liga" e três o número de jogadores que entravam em campo no pedregulho do Beco-sem-Saída.

No plano afetivo, tinha um amor eterno, de 11 anos e indefectíveis olhos verdes. Com ela, já estava tudo planejado: iríamos casar e criar família em Pitangui. Ela ainda não sabia disso, mas era questão de tempo, ela ia saber e, com certeza, ia concordar.

Tudo isso levado em consideração, entende-se porque o desabafo de minha mãe precipitou os acontecimentos: aquele aluno da 4ª. Série do Ginásio e Escola Normal de Pitangui, o GENEP, não iria sair da casa paterna de jeito nenhum. Pensei, pensei e achei a solução para não ser expulso do Paraíso e ficar distante da Eva de olhos verdes: era só tomar bomba em três matérias, não ia nem poder fazer prova de segunda época em fevereiro. Bomba em três matérias não tinha apelação.

Continuei frequentando aulas sem falar com ninguém dos meus planos e lá pela metade de dezembro tudo estava consumado: bomba irreversível em Matemática, Latim e Francês, para surpresa de todos e a grande tristeza do papai. Adeus casa da tia Eugênia, adeus Colégio Estadual, adeus futuro Engenheiro. Feito isso, era repetir a 4ª série, seguir o namoro de mão única e continuar com os projetos agro-esportivo-empresariais do Clube de Regatas Brasil.

Mas se você, prezado Leitor, acha que fica só nisso, engana-se. Tem mais. Antes de criar asas e alçar voo, muita água ia rolar no dia e na noite de Pitangui.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 05/08/2021
Reeditado em 12/10/2021
Código do texto: T7314568
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