A FOME ENGOLE O ENJOAMENTO
Lendo uma postagem sobra a preferência alimentar de uma criança, que é tal e qual os meus netos, lembrei-me de uma vez que eu e algumas outras pessoas tivemos que comer abóbora madura assada na fogueira, sem sal nem tempero nenhum, é quase indeglutível, garanto!
Eu deveria ter por volta dos dez anos e já morava na cidade. Meu avô e outros tios ainda residiam na roça, no bairro rural Divisinha, onde nasci. Esse lugar era um núcleo onde residia a família do meu avô, a casa sede da fazenda e as casas dos tios e ainda umas poucas casas de colonos.
Bem próximo, coisa de um quilômetro e pouco ficava a Divisinha de baixo, onde se concentrava uma outra família, em cuja sede bem antiga moravam a matriarca tratada por Dona Maria Velha e sua filha conhecida por Maria Moça, e as casas dos outros filhos que se avizinhavam dali e ainda umas outras famílias que não pertenciam à família da matriarca.
Um dos filhos da Dona Maria Velha, que morava ali bem pertinho, resolveu comemorar com uma festa única, os três santos, Santo Antônio, São João e São Pedro, recordo que foi no 29 de junho, que ele promoveu aquela festa, aquele baile. Sei que meus tios, um dos mais velhos, que tocava sanfona e o mais novo que tocava violão e viola, foram chamados para tocar naquele evento. Eu era muito criança e provavelmente insisti para ir, minhas irmãs iam, eu acabei indo.
Fomos para a casa do meu avô e de lá à noite para o baile. Aquele lugar naturalmente é bem frio, naquela noite parece que estava pior, tudo agravado pelo fato de que não tínhamos roupas adequadas nem o suficientes.
Não faltava o que comer naquele baile, mas era tudo pago e o dinheiro que minhas irmãs levaram não deu nem para o início.
Dancei não lembro com quem, mas na minha idade, dançar não era coisa que eu já gostasse, então aquilo passou a ficar maçante, quase insuportável. Lembro dos meus tios tocando o repertório que tinham e repeti-lo várias vezes, o baile acabaria com a alvorada.
O frio era muito e a fome foi apertando com o passar das horas. A grande fogueira aliviava o frio, mas a fome parecia ficar mais cruel, vendo tanta coisa para se comprar, mas sem o dinheiro pra pagar.
De certo modo foi bom que a fome não pegou só a mim, Existiam outros lá na mesma situação. A moçada mais velha logo achou um jeito de engambelar o estômago, pegaram algumas abóboras maduras, que era alimento destinado aos porcos e assaram na fogueira distribuindo aos esfomeados, entre eles, eu. Talvez se tivessem conseguido algum sal para salga-las, não tivesse sido tão difícil engoli-las, sabor ruim demais.
“Resolvida” essa parte da comida, restava contar as horas até tudo acabar para irmos embora. Passei a madrugada saindo até a fogueira para me esquentar e entrando na sala onde o baile acontecia, domando a contragosto a minha impaciência.
Meus tios depois de horas tocando e repetindo as músicas, deram lugar para um outro sujeito que eu nunca tinha visto e não imaginava quem era, guardei sua fisionomia, acho que por causa do boné que ele usava e pela cantiga que parecia ser a única que sabia, que era continuadamente assim: “Toma cuidado seu cumpadi seu Mané, que o danado desse bodi qué robá sua muié”. Na minha inocência ficava a indignação, como é que um bode iria roubar a mulher de alguém. Pelo menos nessa parte o sofrimento aliviou quando meus tios voltaram a assumir a música, fazendo o som para o arrasta-pé.
O que não me esqueço é de ver o pessoal passar a pés descalços sobre o grande braseiro, impressionante como não se queimavam.
Quando acabou o baile a moçada saiu festejando a pé pela estrada poeirenta, eu festejei foi tudo ter terminado.