Carta sobre certa liturgia cotidiana
 
Pensar é exercício de alegria
entre veredas de erro, cordilheiras de dúvidas,
oceanos de perplexidade
(Drummond de Andrade)
 
     Há quanto tempo tu és a mesma? Mesmas desculpas, mesmos comentários, iguais orações, mesmas dúvidas, as rotinas de sempre, os atalhos de sempre, as raivas e os ódios de tantos tempos, medos iguais aos de antigamente, pecados repetidos eternamente? A imagem de Deus imutável, sempre um velho, nunca uma criança – pois isto seria herético. Jesus talvez nem semblante tenha no teu imaginário – rindo, chorando, alegre, preocupado, ofegante – sempre o mesmo duma cruz. A quanto tempo tantas coisas são cinza, sem cor ou brilho ou luz. Desde quando apenas o dinheiro é o sustento de uma suposta felicidade, duma ilusória vida boa, dum aparente sossego? E a poesia, que espaço desocupado, por acaso, tenha sido dela? Ou não há lugar para si, tudo é apenas matéria, contas, agenda, barulho, repetição, correria, atrasos, agenda, remédios, barulho, repetição... Espiritualidade do eterno retorno...

     Estas estátuas que vemos por aí, dos mais famosos que nós, solidificadas em bronze ou ferro ou cimento ou mármore, são tão mentirosas, pois sem vida nenhuma, estáticas, imóveis, enquanto os que elas referenciam, foram pessoas em movimento, nunca os mesmos. Enganamo-nos em nosso modo de homenageá-los, eternizando-os em praças e altares. E disto deriva a questão: a quanto tempo somos estátuas em determinadas atitudes, em certos modos, em alguns comportamentos, quanto a tantos defeitos? Drummond se pergunta se vamos aprender a ser humanos – ao menos aprendizes pequeninos? Ainda que soe estranho, a verdade é que é preciso aprender a ser humano, a ser gente. Há velhos que não fizeram escola. Há novos fugindo das aulas. Há alguns que se salvam. E como há estátuas – cujo movimento é falso, pois não mudam mais. Enrijeceram-se interiormente. Em tudo, as mesmas velhas coisas de sempre.

     Embora proclamado como o mistério da fé, a vida igualmente carece de transubstanciação. A liturgia do amadurecimento humano – cada um em sua própria história, em suas idiossincrasias, ao seu modo e ao seu tempo – favorece contínuas oportunidades de alcançarmos outra essência. O Apóstolo fala do velho e do novo Adão. Não essência de estátuas, mas de imagem e semelhança, num processo lento e gradativo de transubstanciação – nossa em relação Àquele que nos fez. É o labor que o tempo e a Graça realizam, tal qual descreve o poeta: o tempo faz dele o que faz de qualquer um; à medida que envelhece, vai estranhamente sendo retrato teu sem ser tu – Drummond outra vez. Trata-se deveras de novos partos que se vai experimentando ao longo da vida, uns deles em meio a dores, outros prematuramente forçados à luz e aqueles em tempos certos. Uma liturgia parturiente.

     Do que mesmo que eu estou tentando falar? Da capacidade poética que você e eu precisamos desenvolver diante das inexoráveis rotinas às quais estamos fadados. Viver é simplesmente a arte de conviver. Simplesmente? – disse eu. Mas como é difícil. Mario Quintana chegou à essência ou, ao menos, decifrou um limite que precisa ser transposto. Conviver sem se petrificar. Conviver sem cair no marasmo. Conviver sem perder o sentido, o gosto, a beleza, o encanto, o prazer. Conviver, reinventando-se. Conviver, pois não há outro jeito, porém, amadurecer ao invés de se acostumar. Isso serve para o casamento, para o trabalho, para a fé, para a solidão, para uma dor, para uma ausência, para a família, para os ricos, para os pobres. E tanto mais necessário quanto mais a idade avança. Uma coisa é certa: sem poesia, fica mais pesado. É por causa duma liturgia poética que
     Em certos dias, nem sabemos porquê
     sentimo-nos estranhamente perto
     daquelas coisas que buscamos muito
     e continuam, no entanto, perdidas
     dentro da nossa casa.
     (Tolentino Mendonça)