Era uma vez a Semana Santa
Ontem, em pleno 1° de abril de 2021, passei pela porta do supermercado para saber como seria o horário de funcionamento na sexta-feira e me surpreendeu a resposta:
- Normal.
Na mesma hora, vieram as recordações do tempo do latim na igreja e da Semana Santa dos anos 50, 60 e mesmo 70. Era muito triste. Para alguns, pela mera proibição de comer carne. Porém, para quem acompanhava os programas de rádio, fossem novelas, futebol ou humorísticos, era mais que triste, era um sofrimento. O costume era substituir a programação normal por outra. Nessa, só se podia tocar música instrumental, clássica ou religiosa. Nada de vozes humanas. Policiavam-se até as risadas das crianças.
Meu pai gostava de ouvir programas de auditório ou humorísticos das rádios Nacional e Mayrink Veiga e eu aprendi a apreciar também. Havia as transmissões de futebol, eu não sentia falta, mas ele sim. Programas de auditório, como Manuel Barcelos e César de Alencar, na Rádio Nacional; humorísticos, como Vai Levando, Alegria da Rua, A Cidade se Diverte, Vai da Valsa, Miss Campeonato e PRK-30, na Mayrink Veiga, tudo saía do ar.
Na Semana Santa dessa época, apenas o Domingo de Ramos era festivo. Havia a agitação da entrada de Jesus em Jerusalém. As mães nos levantavam cedo e nos arrumavam para esperar a procissão onde o Cristo vinha montado no burrinho. Tínhamos que acenar com ramos para ele, dando-lhe as boas-vindas. Algumas vezes, pensei que não fazia sentido vir a nossa Jerusalém se ia acontecer toda aquela tristeza de novo. Mas obedecia e acenava.
As segundas e as terças-feiras pareciam dias comuns, mas já havia novidades desagradáveis no ar. Por exemplo, já havia alguns programas de rádio substituídos. Papai acompanhava tudo e eu o seguia. De repente, ele dizia: agora é Semana Santa, não pode ter programas de graça, queria dizer cômicos. Aí começavam as silenciosas horas da música clássica, clima terrível para um menino entre os cinco e dez anos.
Esses dois dias eram mais normais, porém só parênteses entre a algazarra dos Ramos e os rituais severos que começariam na quarta de noite, com a Procissão do Encontro. Essa procissão, na verdade, eram duas: a dos homens e das mulheres. Em Pitangui, era assim: da capelinha do Bom Jesus saíam os homens, levando Jesus para se encontrar com Nossa Senhora. Eu me assustava com o cabelo do Bom Jesus todo despenteado. E me assustava também quando via a imagem fora do lugar onde passava o ano inteiro, deitado na capelinha ao lado da Cruz. Ele só saía dali para a procissão, depois vinha se deitar de novo.
No caminho, o cortejo descia a rua da Fábrica. Em alguns pontos, uma mulher cantava uma canção tristíssima e levava um cântaro dourado na mão. Diziam representar Maria Madalena com a água que suavizava o martírio de Jesus.
Da igreja de São Francisco, desciam as mulheres. O roteiro marcava o encontro na Rua Padre Belchior, no ponto onde era mais larga. Ali as procissões se detinham, o Pe. Guerino fazia o Sermão do Encontro e realçava a dor de Nossa Senhora ao ver seu filho ensanguentado. Depois de muito sofrer com o sofrimento de Maria, a multidão olhava a lua-cheia e se encaminhava à Matriz, onde se dispersaria. Alguns apressados rumavam direto do local do Encontro para suas casas, na Olaria, na Penha, no Cerrado, no Lavrado, na rua da Cruz, na Fundição, no Chapadão, no São Francisco. O frio já se anunciava.
Na quinta-feira era o Lava-Pés. Jesus lavava os pés dos apóstolos numa lição incomparável de humildade. Essa cerimônia me chamou a atenção quando era menor, mas depois não achava mais interessante. É que passei a conhecer os meninos que se vestiam de apóstolo e sabia que eles já iam de pés lavados para o Lava-pés.
Então vinha a Sexta-feira da Paixão, o dia mais triste, o pináculo do sofrimento de Jesus. O pior para nós era não poder jogar bola. Não havia proibição tácita, mas era melhor evitar: se quebrasse a perna jogando futebol, a perna nunca mais iria encanar.
Nesse dia, Jesus era levado ao Calvário, ou seja, para a porta principal da Matriz. Ali era crucificado. Depois de seu sacrifício, chegava a hora da Procissão do Enterro. Outra figura feminina, a Verônica, acompanharia o corteja, enxugaria o rosto ensanguentado do Cristo e o mostraria à multidão estampado no sudário.
Essa procissão, apesar do tema, era a mais divertida para a garotada, porque era costume acompanhá-la com velas. Daí, eram infinitos os truques que se faziam para queimar a mão ou deixar cair a cera quente no cabelo dos outros. Na arrumação das alas da procissão, ouvia-se o comercial dos vendedores:
- Olha a vela, verde e amarela, quem não comprar fica sem ela.
- Pipoca do Jaú, a melhor de Pitangui. Pipoca do Jaú.
No Sábado de Aleluia, havia a Queima do Judas. A cristandade começava a tirar a forra já durante o dia, quando a meninada o malhava durante o percurso de sua execração pública. À noite, depois de lido seu testamento, reescrito a cada ano por intelectuais da cidade, começava a queima. Os foguetes e rojões colocados no ventre do boneco de pano que tinha beijado Jesus explodiam incessantemente e lavavam a alma da garotada: Cristo estava vingado. O foguetório era imenso e devia ser causa de muitas mortes de cães. As próprias crianças, eu inclusive, tapavam os ouvidos por não suportar tanto excesso de decibéis.
No Domingo da Ressurreição, ainda não tinha futebol, mas o pior já passara. Cristo havia ressuscitado, o Judas fora justiçado, os programas de rádio voltariam logo à normalidade, papai ouviria a Nacional e a Mayrink Veiga e, mais tristeza, só no ano seguinte, quando Jesus, teimoso, entrasse de novo em Jerusalém. As manhãs de domingo continuavam a ser maravilhosas e abençoadas como sempre foram.