Copenhague Zero Grau - Deixando o Céu na Terra
Desligou a geladeira, o gelo virou água, escorreu, desceu pelo soalho da cozinha, saiu pela porta da sala, escorreu por Hellerup, escorreu por toda a Zelândia, virou gelo de novo. Mesmo no verão, a água não resistiu ao inverno das pessoas. 0 verdadeiro inverno.
Da massa branca, salvaram-se Tony e Tina Nuza, ou sei lá que nome têm, não os sei pronunciar.
- Oi, você aí, aonde vai? - gritam pra mim.
- "Vou a não-sei-aonde", grito eu de resposta. Não vou dizer que quero é voltar para casa, eles são deste país, podem pensar que detesto isto aqui, vão se ofender. A verdade é que não quero mais ficar. Não é desgosto daqui, não, mas é precisão de voltar para o Brasil. Tem hora para tudo, já houve tempo de ficar. Agora é tempo de voltar. Mesmo no inverno, a zero grau, tudo era novidade, a neve, esta gente fria, este povo medroso, a super-civilização, a sociedade do bem-estar...
- Não vai dizer que você os acha frios, sem remendo, sem remédio - intervém o Dr. Tricotudo, sempre a ponderar:
- Não é sem remédio, sei que não é, porém é que já estou sem paciência pra derrubar a muralha de gelo. Coração já voltou ao Brasil, fiquei aqui para apagar a luz.
Dr. Tricotudo retruca:
- Mas você tem coragem de voltar para um estado policial? Que loucura! E como é que vai ganhar a vida? Qual é a taxa de desemprego? E a renda per capita?
5ei a que se referem esses aí. À primeira vista, estou fazendo um mau negócio. Afinal de contas, este é o céu na Terra, a Dinamarca é um pedaço importante do Paraíso Escandinavo. Uma maravilha a distribuição da renda, os benefícios sociais, salário desemprego, aborto livre, (e grátis) uma vez por ano, etc. etc. Lá embaixo, aquela pá de problemas, de incertezas, de violência, de desrespeito humano, a miséria a dar com pau. Porém, o resultado humano do sistema é medo, resguardo, frieza, egoísmo, apatia e solidão aguda. Gente de pé muito na Terra, a gente deste Paraíso.
Não vim aqui para mudá-los, nunca pensei. Não podem entender que se queira trocar isto pela América Latina, mas quero, pelo menos, dizer o que penso. E isso, aqui, se pode fazer, é uma conquista deste povo e não uma concessão de cima pra baixo. A liberdade, aqui, não é uma esmola das elites, mas isso não muda nada, no que me concerne. Não posso ficar, há um apelo lá de baixo, ao sul do Equador.
E, assim, digo adeus à Escandinávia. E digo obrigado pelo que me ensinou. E espero que o seu mal tenha remédio.
(Copenhague, 16/07/79)