Copenhague Zero Grau - Medo brasileiro na Berlim comunista
- Não sei por que você tem tanto medo de autoridade, diz a guia dinamarquesa da viagem a Berlim. Está cansada, sem muita paciência para ouvir naquele momento. Viajamos de Copenhague a Gedser de carro; depois, de ferryboat a Rostock e, daí, a Berlim, dirigindo, sem poder pernoitar, ordens estritas da polícia comunista.
Também cansado, respondo:
- Sou brasileiro, tenho direito de ter medo.
- Não entendo, juro que não. Se estamos com todos os papéis em ordem. Se não estamos com arma nenhuma no carro. Por que ter medo?
Como posso explicar? Ela não pode entender mesmo. Foi criada num contexto totalmente diferente. É escandinava. Outro dia, um amigo meu foi ralhar com a filha e deixou a entender que lhe daria um tapa. A menina tem três anos e meio. Foi logo dizendo pro pai que ela chamaria a polícia se ele lhe encostasse a mão. Que pai não tem direito disso. Aprendeu no jardim de infância.
Estamos deixando Berlim Ocidental. As placas todas avisam, como a prevenir que, dali pra frente, a coisa é outra. O muro ali está. Aquilo de que sempre ouvi falar. O Muro separando Berlim. Para os de Berlim Ocidental é “O Muro”. Para os comunistas é a Fronteira ou a Zona Militar.
Tenho receio. Logo depois de ultrapassar a guarda de fronteira, vejo que é bobagem. Não há grandes complicações. Pensei que os comunistas comiam gente, mas não. São muito sérios os guardas, lá isso é verdade. Ganhamos um visto por 24 horas. Só não se pode dormir em Berlim Oriental, é preciso outro tipo de visto para poder pernoitar do lado de lá. De resto, vamos rodando sem ser incomodados, a não ser pelo grande movimento nas ruas centrais. Há milhares de estudantes vindos de todos os lados da Alemanha Oriental a participar das comemorações dos trinta anos de fundação do país. Os trinta anos da DDR, Deutsche Demokratische Republik.
- Está vendo? Basta ter tudo em ordem: o que é que eles podem fazer? O que é que podem exigir mais?
Olha, não dá pra explicar, a não ser numa hora em que você estiver calma. É uma longa estória. É preciso paciência pra ouvir. É a própria estória do medo, que começa quando a gente nasce, que cresce com a gente. É parte da nossa criação. Deus, o pai, a escola, o exército, a polícia, o inspetor de alunos... Criação brasileira.
Ela não pode entender meu medo. Na Dinamarca, o pai não pode bater no filho. Vai preso. De Deus, quase não se fala. Além do mais, é um Deus protestante, mais perto da Terra, menos vingativo que o Deus do Catecismo, Na escola, há liberdade de reclamar. Gurizinhos e guriazinhas de três, quatro, cinco anos votando pra escolher a ' fruta que vão ganhar de sobremesa no jardim-de-infância”. Fazem o serviço militar de cabelo grande ou curto, como querem, sem imposições. A polícia? Bom, essa sabe do seu papel. Gente educada, ganhando bem, sem frustrações, sem ligação com a corrupção, sem precisar descarregar sadismo na população. Se não fosse desgastada, eu usaria a palavra democracia pra definir este pais. Mas respeito, ah, isso há.
Minha amiga não pode entender meu medo da polícia comunista nem de polícia nenhuma. Este medo que carrego, incrustrado em minha pele, tatuagem fonte de muitos reflexos, já condicionados. Ela não pode. Me olha com ar inquisitivo, curiosa, me pede pra falar mais de meu país, de minha criação. Tudo que falo lhe parece, no entanto, tão distante, tão inacreditável. Nunca pensei que os escandinavos pudessem ser tão ingênuos com o que vai por aí. A inocência dos seus olhos azuis.
- Falo depois, tá? Agora vamos curtir este lado do Muro. Estou curioso pra saber como é que se vive em Berlim Oriental.
Mais tarde, por não poder pernoitar, toco de volta pra Berlim Oeste, passando, de novo, pelo icônico Checkpoint Charlie, onde muitas cenas de filmes da época da Guerra Fria foram feitas. No dia seguinte, a ideia era voltar pra ver as competições esportivas dos 30 anos da DDR.
(Berlim, Páscoa, abril de 79)