Copenhague Zero Grau - Amanhece domingo no coração
Amanhece domingo no coração, até parece vai parir a Primavera. Sai feliz que nem se sai pra piquenique nos feriados. Manhã cheira a faz-de-conta. O dia claro é mais claro ainda porque a neve espalha, difunde, multiplica o sol. Amanheceu domingo no coração, a alma bota terno de missa. A neve começa a derreter-se. Veste as botas de sola de couro liso, que hoje é dia de brincar de patinar na crosta de gelo nas calçadas do centro da cidade. Criançou!
Sai. Lá fora, todas as pessoas ficaram bonitas, todas as pessoas ficaram simpáticas, pois não, por favor, muito obrigado, todas as coisas estão no lugar, os trens correm no horário, os olhos dessas mulheres estão mais azuis, os cabelos dessas mulheres estão mais louros, há promessas esparramadas nessa brisa leve, friinha, cheirosa. Até nos cemitérios ajeitam festa. Coveiros uniformizados, em dia com o sindicato, abrem covas, podam a folhagem, engraxam as lápides. Às saídas das estações do metrô, parece semearam esperanças. Ele faz a sua parte, reforça cada uma dessas esperanças, dá-lhes milho no bico, alimenta uma por uma. Essas esperanças parecem pombos na praça, pura inspiração de felicidade.
Amanheceu domingo no coração, mas nada de espetaculosamente original aconteceu. No quiosque da estação, os jornais publicam as mesmas fotos de notícias repetidas com protagonistas diferentes. O Ocidente se acovarda por alguns barris de petróleo, as leis internacionais são violadas (isso não pode ser, vamos então voltar à lei da selva?), há "subversivos" e "dissidentes" sendo "interrogados” em todas as partes do mundo e, neste exato instante, milhões morrem de fome em muitas partes do planeta. Nada de realmente extraordinário aconteceu, a não ser que amanhece um certo gosto lá no peito, cheirando a ajantarado de domingo. Está errado agasalhar indiferença pelo mundo cinza dos jornais, é a vida que flui e maltrata muita gente, mas não pode impedir o peito explodindo de um bem quase esquecido. Viola a se deixar tocar por dedos de alvoroço.
É que amanheceu domingo no coração, permitam-lhe repetir. A neve se derrete, o sol começa a sair, as portas do mundo estão abertas, os arcos todos serão triunfos, as arcas alianças com as asas da Fortuna, vai conquistar o mundo, ele não pode ser tão grande que não caiba no coração de hoje, que vê a neve se derreter, o sol sair e que, pra seu desgoverno, é um coração em que o domingo amanheceu. Um coração que se encheu, que se engravidou, não cabe mais em si, já se contrai, não pode mais e, parece, vai parir a primavera.
(Copenhague, 18/12/79)