Copenhague Zero Grau - A vizinha do lado
A vizinha do lado tem uma mijada firme, sonora, concentrada, capaz até de distrair seu vizinho de um livro de aventuras. Estamos separados por uma parede em forma de L, cujo pé divide o banheiro dela do meu quarto de dormir. Toda noite, eu já na cama, entre onze e meia-noite, começa a agitação no apartamento da velha solitária. Ritual. A banheira se enchendo, móveis arrastados, pias se abrindo, panelas remexidas.
Isso sempre me intrigou. Não que o barulho me atrapalhasse o sono, mas é tudo curiosidade por saber por que logo a essa hora. Na certa, dorme o dia inteiro. De dia, o apartamento do lado é um silêncio de asilo. Aquele cachorrinho latindo, quando alguém abre a porta do edifício e o cheiro gostoso do pão que a velha faz uma vez por semana são os únicos sinais de vida. Fora isso, é um apartamento triste, triste como soem ser os deste bairro de aposentados.
Todo aposentado tem uma vida boa. A vizinha do lado tem lugar pra morar, médico de graça, salário decente, pode até viajar duas vezes por ano pra Mallorca, como todos fazem, numa' dessas inúmeras viagens de grupo. "Charters" para o sol. A vizinha do lado só não é mais feia que o cachorrinho o, um besouro de orelhas, preto, a cara do capeta na Quaresma. Não gosta de crianças nem de gente alegre. Ela não recebe visitas nem visita ninguém, acho que só sai de casa para as compras ou pra levar o cachorrinho no poste. É chata por convicção, nunca a vi sorrindo.
Nunca sabe se me diz bom-dia ou se me manda à merda. Pergunta sempre quando é que vou embora, quando é que voltam os antigos moradores, uma gente simpática e educada, faz questão de frisar. Implica com o meu tempero, o cheiro do meu alho, meu sotaque em dinamarquês, com o barulho do meu piano, com a cara das minhas visitas, com as brincadeiras de meu filho de três anos. Chata! Só nunca reclamou foi do ringir da minha cama, em certas noites não exatamente consagradas ao prazer da literatura. Chata! É uma dose a vizinha a do lado, vocês é porque nunca tiveram uma.
Eu TIVE uma. Anteontem, no “Politiken”, li que foi encontrada morta no apartamento, já havia dois dias, junto com o besouro de orelhas. Derrame cerebral, acusou a autópsia, nada de suicídio, nada de crimes, como especulou o “Ekstra Bladet”, semanário sensacionalista. O cachorro, por certo, morreu de fome. Quem deu o alarme foi o carteiro, que ouviu o cachorro ganindo, já meio sem forças por dois dias seguidos. No terceiro dia, desconfiado, chamou a polícia.
Eu bem que podia ter imaginado, mas juro que não liguei muito ao silêncio do banheiro do lado, além de ter passado o fim de semana na casa de amigos em Albertslund, onde estava minha família. Pensei que tinha viajado, estivesse curtindo o sol em Mallorca. Mas não, a velha se foi mesmo. Não deixou parentes, o Estado foi quem se encarregou de tudo, inclusive da cremação. Não foi pranteada nem deixou saudades, a não ser, talvez, em mim. Há dois dias não durmo direito, sentindo falta daquela mijada firme, sonora, concentrada, ponto inicial de uma agitação que parecia sem sentido, mas que fazia pano de fundo à minha leitura noturna e marcava minha hora de pensar em dormir.