Copenhague Zero Grau - Escocesa em Fogo
Acorda sobressaltado, um pesadelo a mais. Suar assim só no deserto, só numa sauna. Deus meu, quando é que isso acaba? Tem urgências e ninguém com quem reparti-las. E sabe que não vai voltar a dormir tão cedo. Pensa em Elvira, a trêmula. O telefone tem, falta é coragem. Chama assim mesmo. Ela se ofende, loucura, a essa hora da noite, você acha que estou perdendo o juízo? Já assumiu outro, cansou de aturar indecisões, a vida roda como quer, não como ele quer. E Inocência? Bom, já é tarde. Essa, que Deus a tenha! Uma perna partida, um osso mal encanado, gangrenou, subiu aos Céus. Agora é só rezar por ela - que pouca-vergonha! - ela não pode mais.
A quem chamar? Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, vou jogar esse cordão e a medalhinha no lixo. Não aguento mais essa má fortuna. Quando ela – aquela - lhe deu, no aniversário, cordão e medalhinha era justamente contra mau olhado. Estranha mistura, uma mulher tão racional! Talvez estivesse brincando, o mais certo é que estava. Ele topou a brincadeira, enrolou no pescoço, tá enforcado, disseram os amigos. Rápida e apressada primavera! Deixou-o numa fila de lanchonete, já com dinheiro separado pra lhe comprar cachorro-quente, tudo por um mal-entendido qualquer. Que pena!
Depois, daí em diante, um fracasso aqui, outro acolá, mulher nenhuma se dispôs a repartir as urgências da carne. Dias atrás, chegou quase a ligar pra Laura, que, por um pouco de dinheiro e um olhar mais terno, não se recusa a alegrar noites solitárias. Além daquilo tudo, sabe conversar, jogar baralho, ficar silenciosa assistindo um filme... Em meia hora estaria ali, solução. Na metade da discagem dos algarismos, no entanto, pousou o telefone. Não havia de fazê-lo. Depois lhe viria o remorso conhecido, o mesmo que vem quando se apela para aquelas soluções mais drásticas e que não carecem de companhia, a não ser a de uma boa imaginação. Não, decidiu-se: não vai ligar.
A insônia é tolerável até certos limites. Já exausto, apela para o armário, de onde retira a amiga escocesa, de três quartos de litro, coração de fogo. A garrafa, o uísque. Seus lábios se encontram à boca do copo, aquele beijo desce queimando pela goela abaixo, vai chegar ao forro do estomago, repartir-se dentro, navegar suas veias, visitar seu sangue, fazer feliz um coração solitário.
Companheira de fogo, vamos dormir juntos? Ela, ao lado da cama, vazia ficou, talvez já tão tranquila quanto ele, que vai dormir falando sozinho, só um pouquinho agitado pelo que pretende fazer amanhã. Enquanto o sono não vem, vai rogando praga nesse cordãozinho e na medalha, jurando que amanhã lhes dará sumiço, que assim como está não pode ficar.
(Copenhague, 11/1975)