Letras da Arábia - Passarinhos de Barro
Tudo é provisório e contagioso. Por isso é preciso livrar-se dessas almas penadas que escolheram fazer desta vida um vale de lágrimas. E fizeram para si a opção da amargura. É preciso livrar-se desses que não suportam um dia arrebentando de azul, uma brisa-vagão a transportar o cheiro de rosas como passageiro, o sol, a alegria.... É preciso livrar-se dos exatos, dos cartesianos de horário integral. Livrar-se dessas caras vincadas, desse rito no rosto de importância forjada. É preciso livrar-se dessas roupas limpas e dessas boas maneiras – embora nada se tenha contra as roupas limpas e a gentileza – desde que não obriguem à consciência pejada ou à carniça no coração. É preciso livrar-se, porque são doenças contagiosas.
Lá longe, estão os humildes, mas nem sempre a Humildade anda junto com o coração aberto. Quer-se os de coração aberto, por onde andarão os de coração aberto? Preferir-se-ia que fossem humanos e em estágio adulto. Mas tem-se procurado tanto e os de coração aberto vão ficando raros, os corações estão se fechando como a flor do mandacaru ao chegar seu tempo.
Quem serão os de coração aberto? Serão os passarinhos? Serão os loucos? Serão os inocentes? Serão os desimportantes? Serão os simplórios?
Ou serão, apenas e tão somente, as criancinhas da Rua do Céu, Pritinho, Nego da Luça, Zé do Zé Gerardo, Tuniquinho, aqueles enlameados e rasgados, os pequeninos fazedores de passarinhos de barro?
Tudo é provisório e contagioso. Se se continua cercado desses rostos amargos, dessas lacrimais enferrujadas, vai-se tornar assim também. É mister que se decida, é preciso SER – não SER ALGUMA COISA ou SER ALGUÉM – mas simplesmente SER. E, infelizmente, não por nosso gosto, deixar que essas almas penadas cumpram dolorosamente o seu calvário de viver.
Mas bem que podia ser tão diferente! Tão diferente, diferente !!!
Tão diferente!
E as lágrimas do mundo, duas espécies diversas, uma o oposto da outra.
(Jeddah, Arábia Saudita/08/1975)