O Último Carnaval
Numa cama de hospital, em 2009, eu balbuciei à enfermeira: “ano que vem, no centenário do Corinthians, vou sair pela Gaviões da Fiel, no Anhembi”. O hospital estava ficando vazio e silencioso. Era sexta-feira de Carnaval, a enfermeira, acostumada com aquele nível de delírio, achou que eu era mais um paciente com mania de grandeza, entupido de remédios. Deu um leve sorriso, fez que concordou com aquele absurdo e saiu do quarto.
No ano seguinte (2010), 100 anos do Clube do Povo, estávamos minha irmã, meu cunhado (de novo!) e eu, num ônibus velho, rumo ao Anhembi. O samba-enredo iria contar a história do centenário. A fantasia era um tanto ridícula, desfilar é ridículo, o Carnaval é ridículo, a Quarta-feira de Cinzas é ridícula. Durante essa festa, é permitido ser ridículo sem explicar o porquê. Pois bem, a fantasia, que parecia uma roupa de presidiário, era composta por um inexplicável chapéu e uma placa com a inscrição: “Abaixo a Ditadura”. Essa é a minha descrição; uma descrição mais detalhada, somente com algum carnavalesco.
As alas, repletas de turistas deslumbrados, estavam apinhadas (“pois assim se ganha mais dinheiro”). Fiquei mais tranquilo: entre alegorias e adereços, eu esconderia minha falta de samba no pé. A plateia e os implacáveis jurados não testemunhariam minha súbita falta de coordenação. Eu tinha certeza, aquele ano, se a Gaviões fosse rebaixada, a culpa seria minha; se fosse campeã também, era evidente, eu seria o responsável, pois nem a comissão de frente, nem a velha guarda, nem o mestre de bateria e nem o mestre-sala davam mais o sangue pela Escola do que eu. Quase que deixei o meu sangue, literalmente, tentando compensar a cintura travada, com esforço e dedicação.
Fui escondido entre a minha irmã e meu cunhado - eu estava em convalescença -, para garantir a travessia da Passarela do Samba sem prejudicar o desfile, que foi ensaiado (pelos outros) durante um ano. Diluído na multidão de passistas, eu pude disfarçar meu molejo de japonês, “sambando”, com as palmas das mãos, ora arriscando os dedos indicadores em riste. Havia vencido aquela avenida como um detento no Corredor da Morte, mas tudo saiu bem. Ainda suspeito que a Leci Brandão pesquisou minha árvore genealógica à procura de algum afrodescendente. Vivi um dia de estrangeiro em São Paulo.
Após a manifestação artística do imaginário popular e do folclore brasileiro, experienciando e vivenciando a alegria do baluarte que é o folião... Abandonando esses lugares-comuns de intelectual da USP teorizando o Carnaval, eu só queria sair dali e tomar umas cervejas geladas até começar a Quaresma. E foi isso que fizemos num barzinho da Zona Norte, relembrando o que acontecera há minutos.