Disfuncional, desumana, desigual e desapegada

Enquanto as vacinas chegam aos poucos, sem perspectiva de que venham em quantidade suficiente no primeiro semestre de 2021, as aglomerações pelo estado se proliferam como se fossem uma praga de gafanhotos sobre as lavouras. Assistimos pelos telejornais nesta manhã de segunda-feira festas clandestinas reunindo jovens em cidades como Porto Alegre, Caxias do Sul e Passo Fundo (imagem acima), embora saibamos que esse fenômeno cresce e se espraia junto com a pandemia pelo Rio Grande do Sul.

Por que isso acontece? Simples (e trágico): porque 80% dos óbitos por Covid-19 no RS são de pessoas acima dos 60 anos e, nos 20% restantes, de cada 10 óbitos, 9 são de vítimas com alguma comorbidade, ou seja, os inclusos nos grupos de risco, majoritariamente situados na faixa etária de 40 a 59 anos, conforme os dados da Secretaria Estadual da Saúde que a imprensa divulga. O fato, então, é que as pessoas que se aglomeram, como sabem que correm pouco risco de vida, não se importam de serem cúmplices do espalhamento do vírus fatal, desde que possam curtir a vida numa boa. Simples assim. Pior ainda: sabem que em caso de complicação grave por Covid-19, terão prioridade no atendimento por serem pacientes com maior possibilidade de cura.

O que esperar de diferente num país onde a "variante preocupante" faz explodir o sistema de saúde do Amazonas e, mesmo assim, com as pessoas morrendo sem oxigênio hospitalar, a polícia militar ainda tem de ir às ruas dispersar aglomerações que violam o toque de recolher imposto pelas autoridades? E o Amazonas é exemplo também para o fato de que, em vez da devida precaução numa pandemia onde ainda se espera que pelo menos os profissionais de saúde e os grupos de risco sejam vacinados, as pessoas saíram às ruas em dezembro contra as medidas preventivas de isolamento social do governo e este, acuado, recuou. Deu no que deu: mortes e mais mortes num sistema brutalmente colapsado.

Estamos indo pelo mesmo caminho no Rio Grande do Sul? De certo é que a tal "variante preocupante", que tirou o oxigênio de Amazonas - e começa a afetar o vizinho Pará - e assolou o Reino Unido, tende a se espalhar pelo Brasil por ser de 50% a 70% mais transmissível. Ao chegar aqui, a tendência, pelo visto nos exemplos acima, é de que o Distanciamento Controlado do governo estadual, flexibilizado como está hoje, não dará conta do problema e não haverá leito hospitalar, insumos e profissionais suficientes para atender suficientemente tal demanda. O problema se agrava pois, como o caso inglês nos demonstra, mesmo com rígido isolamento social, vacinação e uma moderna rede hospitalar, a "variante preocupante" é difícil de ser controlada.

Claro que as aglomerações são apenas um vetor. Cabe também fazer perguntas como: Quais os critérios epidemiológicos que nortearam a prefeitura de Porto Alegre na flexibilização que o novo governo fez? Qual o motivo de se realizar o Enem nesse momento? O que justifica o retorno das aulas presenciais ante a perspectiva da "nova variante"? Para responder parcialmente a essas questões, basta saber que o ministro da Educação "culpou" a imprensa pela abstenção recorde de mais de 50% de estudantes no exame nacional. Será, senhor ministro? Foi a imprensa ou preocupação com a pandemia mortal que levou nossos jovens a se absterem? A boa notícia que a abstenção recorde nos traz é que a maioria, os jovens que não compareceram, tem consciência do momento pelo qual passamos e da importância em não espalhar o vírus, mesmo ante o negacionismo de determinadas autoridades. Salve, a consciência e a atitude de nossa juventude não se reduzem a do contigente festeiro que se aglomera.

O Brasil é, sem dúvida, uma sociedade doente, e não me refiro somente à pandemia, mas sim aquela "anomia social" de Durkheim, uma sociedade morbidamente disfuncional e desumana, eis que a vida humana não parece ser prioridade. Uma sociedade estruturalmente doente e desigual, não se sabe se doente por ser desigual ou se desigual por ser doente - pode ser que as duas assertivas sejam verdadeiras. Sempre colocamos os pobres na periferia, os doentes nos hospitais, os velhos nos asilos, os portadores de necessidades especiais em casas especiais e os sem razão nos manicômios. Esse quadro, na pandemia, apenas se agrava exponencialmente, pois parece que agora também os idosos e demais pessoas dos grupos de risco podem ser colocados sem problema nos cemitérios, segundo o que parece ser a ótica de parcela significativa dessa mesma sociedade, desapegada da vida alheia.