FARSANTE FRENESI
Adoro construir personagens nos pedaços que sou, que vou, que estou. Adoro confundir meus guizos, chamuscar minhas certezas, cambalear meus passos firmes. Adoro zombar do meu lastro, desanuviar os gritos robustos que empesteiam o que vejo, o que relampejo. Nesse tom de arlequim, nessa ossada desembestada e faminta, sou o que mais sou, ecoo o que tenho de mais hemorrágico, de mais divino. Sou refém dos porões solitários das rimas, sou guardião estranho de frutos ainda a cerzir, ainda a macular. Sabe, soltar palavras me refaz humano, atávico, esbelto. Soltar palavras sem as rédeas quebradiças da dúvida, sem o teclar alucinado de algum anjo capenga, é maravilhoso. O escritor é mero serviçal das esfomeadas lisuras da alma. É mero aprendiz dos cantos de Deus, nada mais é do que sua própria sanidade encharcada de tantos talvez, tantos quem-sabe, tantos pudera. O escritor cumpre pena perpétua nos calabouços das inquietações, fustigando o que seu coração teima em frisar, em esconder de sim mesmo, num farsante frenesi. Assim vai gotejando as ideias que sobrevêm à fome, à dor, ao relento escrachado do seu iluminar mais lindo, mais aquecido, mais destemido.