SEM MEDO

SEM MEDO

*Rangel Alves da Costa

Perdoa-me, mundo, perdoa-me, mas o que venho aqui confessar será em teu nome, roubando de ti as palavras e os sentimentos, porém de modo a dizer verdades que jamais tiveste coragem de dizer, ainda que tudo isso tivesse vindo, nos passos do tempo, afligindo o teu coração e tuas entranhas. De início, confesso que te compreendo. Sim, eu compreendo o temor em expressar a verdade. Sei muito bem o quanto é perigoso e temerário apontar o dedo e dizer: Você errou, você está errado! Contudo, em teu nome confessarei, e começando por instintos meus - e que são de todos -, que me alegram por dentro e por fora ganham, por conveniência social, uma feição de asco e ojeriza. Sou mentiroso. Somos mentirosos. Desdenhamos de tudo que não nos traga proveito. O preconceito e a discriminação são tão nossos que deitam e acordam no nosso leito. “Você é pobre, é preto, é vagabundo”. “E por ser preto e pobre, você não passa de um marginal!”. Estarei mentindo quando, silenciosamente, dizemos isto por dentro? Estou mentindo sim, pois também digo isso por fora. Quando não falamos, nossos olhares tomam as palavras para negar o outro, para sentir medo e nojo, para se distanciar, para não querer nem chegar perto. Estarei mentindo quando eu vejo em cada olhar uma balança de julgamento, um punhal afiado pronto para sagrar, uma fogueira ardente para sobre ela derramar todo aquele que julgamos a nós inferiores e, portanto, desprezíveis?

Enquanto mundo, o mundo cala, aceita, consente. Contudo, é a omissão na verdade que faz com que o imprestável prospere e o mal tenha garantida semeadura. Mas tomei tuas palavras sem medo, e para expressar realidades que se ocultam nos cortinados sociais e nas máscaras da aceitação por conveniência. Creio que se tivesse coragem diria a verdade sobre a justiça, sobre os juízes, sobre o direito, sobre o aparato judicial. Que vergonha tudo isso! Sentenças compradas, sentenças vendidas, julgamentos infames, decisões baseadas em leis inexistentes, liminares protegendo o crime e os criminosos, togas enlameadas, órgãos julgadores putrefatos e endeusados bandidos. Ora, mas não é a justiça que condena o ladrão de galinha e deixa em liberdade o ladrão de milhões? Ora, não é a justiça que rasga as leis no instinto de proteger os protegidos e endinheirados? É esta mesma justiça que encarecera e depois esquece o pobre, do preto, do mero acusado, mas deixa solto o bandido do alto escalão. A justiça que é uma fábrica de marginais, de reclusos apinhados em lixões, mas que depois supõem uma ressocialização. Ademais, a lei só é rigidamente aplicada quando é para condenar o pobre, o preto, o já condenado pelo próprio mundo. Diferente ocorre no julgamento do poderoso. Então todo um vergonhoso aparato começa a surgir. Surge a hermenêutica, a analogia, a discricionariedade da lei, a jurisprudência forjada, o livre convencimento do julgador, etc., etc. E tudo para encontrar brechas para dizer que o crime não foi crime. E principalmente para dizer que o acusado até santo é.

Então, mundo, são coisas assim que não costumo engolir, ainda que eu saiba que são poucos os que pensam iguais a mim. Mas são poucos os que encaram a realidade com os olhos e a voz da verdade. A muitos, ao invés da verdade, o que lhes alimenta parece ser somente a omissão, a ideologia barata, a mentira, o fanatismo. Um povo que gosta de ser cuspido não é povo, mas uma escória. Uma gente que gosta de apanhar na cara não é gente, mas massa de manobra. Uma sociedade que elege o modismo, a safadeza e o imprestável, como modo de condução de suas vidas, não é sociedade, e sim um deplorável bordel. Diógenes, o filósofo que vivia procurando um honesto com uma lanterna, jamais encontraria seu objetivo. Por outro lado, demasiado fácil encontrar os antros de roubalheira, de corrupção, de desonestidade. Entanto isso, os humilhados continuam aplaudindo seus algozes.

Escritor

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