Carta sobre um solilóquio em dezembro
 
Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
[...]
Não é assim que é a vida?
(Paulo Leminski, Aviso aos náufragos)

     E se eu tivesse morrido três, nove, quinze (dias, meses, anos) passados, o que ainda haveria de mim no mundo? Vez ou outra um comentário, um palpite, uma lembrança, alguém aqui outro acolá derramando o resto das lágrimas. O que haveria de mim? O que eu gostaria que ainda perdurasse? São questões estranhas às conversas de sempre, é coisa pra filosofia de bar, é janela de paisagens infinitas e metamórficas. Da morte e suas interrogações se foge feito o diabo da cruz. E quando ela se estaciona em nossa sala, o que fazer? O que dizer? Drummond convida, para esta Reunião em dezembro:
 
Reserva poltronas especiais para os que ainda a pouco
se foram. Não estão acostumados
ainda ao novo lar, ou somos nós
que de perdê-los não nos demos conta?

     Mas sou eu a ocupar essa poltrona, afinal, eu parti – ou assim suponho a fim de que o texto prossiga. Escrevo antes da ida por acreditar piamente que não se morre uma só vez, nem de vez – são as conversas da Mesa de Drummond. Está acontecendo, lenta e discretamente, o meu funeral. Suas revelações se darão, óbvio, em dia e hora incertos – a incerteza de tudo na certeza de nada, é o Balanço da poética drummondiana. Contudo, agora, antes destas linhas realizarem sua profecia, alguma coisa, em mim, morre. Estranho, verdadeiro e paradoxal este pensamento que consome toda a carne com um fogo que por dentro é frio – versa João Cabral de Melo Neto. Digo isso relendo A hora do cansaço, inspiração de quem já deixou acima seu balanço:
 
As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.
[...] Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um ou outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.

     Escrever oscilando entre o antes, o durante e o depois, o agora e o ainda não, exige o tanto quanto é exigente ter consciência de que vivemos nessa constante tensão. O que sobrará de mim quando eu não estiver mais? O que são estas coisas que agora morrem, sem que eu me dê conta? Bem, morre já tudo o que for esquecido depois, existe em estado potencial de morte tudo o que for única e exclusivamente meu – segredos, intimidades, individualidades, resiliências... – e morre também aquilo que deixarem morrer por descuido, por desamor, por necessidade, por abandono, por inutilidade... São funerais de mortes lentas, feito fogo brando, demorado. Se o pecado nasce por sua execução e morre por sua confissão – alguém poetizou assim –, esta carta se torna confessional:
 
[não que não devesse ser]
 
Fato é que a morte é assim:
morreu ele, morreu ela,
e morreu um pouco de mim.