Mas era ruim esse Paolo Rossi, bah

Essa Copa do Mundo de 1982 na Espanha o pequeno Joãozinho assistiu atentamente e eu nunca esquecerei. Sim, o Brasil tinha uma grande seleção, encantadora e emocionante, mas o que marcou em mim foi ir na casa da tia Dione e do tio Glênio olhar os jogos da Canarinho à cores. Cara, ver TV a cores depois de anos em preto&branco foi algo indescritível, revolucionário, um encantamento mágico como poucas vezes tive na vida. E ver Falcão, Zico, Sócrates, Júnior, Eder e Leandro no mesmo time, gastando a bola, só acrescentou ouro ao diamante. Adeus, Telotto P&B valvulada do Nery, fostes eterna enquanto durou, não te esquecerei jamais desde a Copa da Argentina lá na Colônia, mas a fila anda.

Buenas, mas era ruim esse time da Itália, puxa vida, que bando de nabas esses caras. O esquema deles era 1/9/1, ou seja, o goleiro - um velhão chamado Zoff - nove volantes de contenção murrinhas tipo o Dunga e o Bruno Conti na frente, sozinho, um oásis naquele imenso deserto de futebol entre o velhão e ele. E o Conti, ponteiro direito se não me engano, também não era nenhuma maravilha, era um caolho em terra de cego, não fardaria no segundo quadro do Tricolosso da Azenha. Esse time da Itália era tão ruim, tão mucufa, que se classificou com três empates na primeira fase! Se não me falha a memória, dois 0x0 e um 1x1. Só fizeram um gol na fase de grupos e se classificaram com apenas três pontos! Agora imagina as outras "seleções" daquele grupo, vixe, minha nossa, que ruindade. Só um gol. Entretanto, um golaço. Do Bruno Conti, claro, pois os outros acho que nem sabiam chutar bola no gol. Ele deu um disparo de fora da área, a bola foi no ângulo e, se não me engano, ainda bateu levemente na trave antes de entrar. Lindo. E só, né, pois o raio realmente não caiu no mesmo lugar duas vezes para a Itália naquela fase de grupos. Paolo Rossi? Olha, eu nem lembro se ele jogou na primeira fase.

E vejam que eu escrevo essa crônica calcado somente na minha memória, sem usar o Google. Cronista raiz usa a memória, sem medo de ser enganado por ela como outras já nos enganaram nessa vida, e quando a memória falha ou é ruim ele a reinventa, pois um bom e experiente cronista sabe que o que faz é literatura e usa a imaginação, eis que os fatos são para os cronistas medíocres e os cientistas chatos e rigorosos enrugados. Cronista Nutella é aquele que, sem o Google, não sabe nem soltar um pum deitado, desconhece seu ofício e a vida rodrigueana como ela é. 

Pois voltemos ao Paolo Rossi. Morreu ontem, deixando viúva e filhos, aos 64 anos. Uma lástima, um homem relativamente novo ainda, com no mínimo uns 15 ou 20 anos para curtir a família e os netos, pelos padrões de longevidade italianos. Mas não é por isso que eu vou ser hipócrita e politicamente correto aqui e deixar de dizer que ele não jogava bosta nenhuma e era um baita dum perna de pau. Ele e aquela tal Azzurra, que eu chamava de A Burra, pois não havia vida inteligente naquele time de marcadores, fora o Conti. Eram dez atrás segurando o jogo e um na frente pescando, zero de criatividade. Um time destruidor que só marcava e pescava. E o Brasil, enquanto isso, massacrando. Nossa seleção só possuía uma falha: o goleiro, Valdir Peres, do São Paulo. Peruzeiro. No primeiro jogo, contra a União Soviética, o comunista de vermelho - sim, em 1982 eles ainda existiam - deu um chute lá do meio do campo, praticamente atrasando a bola, e o frangueiro foi pegar, deixou escapar, a bola bateu na canela dele e entrou. Parecia o Taffarel quando via o Jorge Veras em Grenal. Entretanto, tudo ok, aquela seleção não precisava de goleiro mesmo, quem tinha de ter goleiro eram os retranqueiros italianos.

E o Brasil subiu de fase passando por cima de todo mundo e caiu no grupo de Itália e Argentina, para azar e desespero deles. Só a Argentina colocava receio, pois havia sido campeão do mundo em 1978 e tinha o tal Maradona, El Pibe de Oro, com a 10. Por falar nisso, lembrei agora que a Itália só tinha conquistado, então, dois títulos, lá nos anos de 1934 e 38, quando os fascistas - sim, eles ainda existiam até 1945 - de Mussolini governavam o país, sendo que uma dessas copas foi na Itália e, claro, foi roubada por eles. Na outra com certeza foi muita sorte deles e muito azar dos outros. E lembro que os hermanos igualmente roubaram a Copa de 1978, lá na Argentina, onde o ditador argentino foi no vestiário dos peruanos antes daquele jogo escandaloso onde o Quiroga - ou seria "QuiDroga"? -  tomou um monte de gols e os peruanos ganharam um milionário carregamento de trigo para o seu pais e perderam para sempre a honra e a vergonha na cara.

Pois então, nós, os mocinhos do futebol arte, no grupo dos dois maiores malfeitores do futebol mundial, argentinos e italianos, sendo que os últimos, ainda por cima, eram Coalhadas retranqueiros. Não sabe quem foi Coalhada? Vai no Google, eh eh eh eh. Lembro que eu estava em aula pela tarde no Cruz de Malta do diretor Tigrão quando Argentina x Itália estava acontecendo. Um colega ouvia de radinho de pilha e contava as novidades. Itália 1x0. Itália 2x0. Não acreditei, os argentinos conseguiram perder para os italianos, ah ah ah eh eh eh ih ih ih oh oh oh uh uh uh. Não podiam ser grande coisa. Imagina, um time que consegue perder pra Itália, o maior engodo do futebol mundial? Um país cujo futebol era tão fraco que necessitava comprar jogadores de outros países para dar algum valor para o nacional deles. A "seleção" (?) que Pelé & Cia desconsiderou na final do México em 1970, colocando 4x1. Mas os argentinos perderam, pois, justiça seja feita, se Mussolini morrera há quase 40 anos, os hermanos agora não estavam em casa e não tinham o Peru e o seu general ditador para dar uma força. Bem feito, mereciam mesmo perder pra Itália, suprema vergonha e escracho, eh eh eh eh.

E claro que a gente não ia respeitar um time que perdeu pra A Burra, né? Brasil 3x1 Argentina, com Júnior metendo gol pelo meio das canetas do tal Fillol e Maradona expulso, por ter entrado deslealmente em Batista, o meio-campista gaúcho que jogou na Máquina Tricolor e num outro clube menos categorizado de Porto Alegre - não, não é o Fuss Ball ou o Cruzeiro, é o outro aquele, o vermelhinho -. Bom, agora era bater cartão contra a Itália, tirar uma folga e ir para as semifinais. Jogando pelo empate contra aquelas nabas, imagina? E lá se foi o Brasil para o estádio Sarriá e o pequeno Joãozinho para a casa da tia Dione e do tio Glênio. Itália, o que é isso, eh eh eh eh, ridículo. Hoje vejo essa gurizada aí com camiseta de time italiano, no meu tempo isso não existia, era coisa de jucão, de mané, de arigó, de otário. Existiam só os clubes do Brasil - Grêmio & Cia - e a Seleção Brasileira, o resto era tudo alemão, vitimas potenciais do cararinho avassalador, tipo os "joões" do Garrincha. Isso, alemão, pois esses, ao contrário dos italianos, possuíam um futebol que merecia algum respeito. Algum. Os italianos eram conhecidos pelos fascistas - os primos pobres, incompetentes e burros de Hitler, a fissura do Eixo -, pelos números romanos - nunca esqueço da Dercy Gonçalves: "Não sei porque ensinavam tanto número romano na escola. Vai ver achavam que Roma iria invadir o Brasil", eh eh eh eh  -, a maravilhosa Serra Gaúcha - com seus vinhos, queijos e belas cidades - e as espetaculares colonas italianas, principalmente aquelas filhas de italiano com alemão, as "alegringas" ou "gringamoas", que nem a... Bom, acho melhor deixar a lembrança da "..." pra lá, que era mais bela e encantadora que a TV colorida da tia Dione. Voltemos a Itália e ao Paolo Rossi.

Sim, naquele jogo, que seria o segundo "maracanazo" brasileiro, apareceu a Itália com um centroavante, o tal Paolo Rossi, o Bambino D'Oro. Eu nem sabia que existia essa posição no futebol italiano. Não lembrava dele na primeira fase e nem no jogo com a Argentina - mas nunca mais o esqueceria depois. Então lá vinham os retranqueiros com um novo esquema, o 1/8/2. Dio mio, que ofensividade, que medo desses bambinos de latão, eh eh eh eh eh. Começa o jogo. Não sei se foi o primeiro ou o segundo gol, mas comecei a ficar com uma leve preocupação quando o Toninho Cerezo foi virar o jogo na frente da grande área brasileira, colocou a bola no pé do Paolo Rossi, que agradeceu e estufou a cidadela do frangueiro do São Paulo - aquele que o "Artilheiro de Deus" Baltazar batera em pleno Morumbi um ano antes -, que não teve culpa alguma. Como poderia ter culpa um goleiro numa seleção onde ele era apenas figura decorativa? A culpa era do Cerezo, claro, que era bola, mas que numa seleção onde havia Sócrates do Corinthians, Zico do Flamengo e Falcão - Rei de Roma - na meia cancha, só sobrava pra ele ser volante mesmo. E ele, o grande "Cerezo do Atlético Mineiro", virou o jogo na frente da área!

Gente, naquele tempo todo mundo que começava a jogar futebol, seja nos campinhos ou na várzea, ouvia: "só não vira o jogo na frente da nossa área". Isso era lei, tu não podias fazer isso. Lá na Colônia, onde Cláudio Duarte surgiu para uma carreira medíocre como jogador no tal vermelhinho de Porto Alegre e um período glorioso como treinador do Grêmio, nunca vi ninguém fazer a bola cruzar de um lado para o outro na frente da grande área defensiva. Pois o Cerezo, o boleiro do Atlético Mineiro, fez isso. Eu e o Oberdan, nos jogos contra a Super Quadra 2, lá na Cohab, nunca virávamos o jogo na frente da nossa grande área. O Cerezo, virou. Nos pés do magrelo feioso aquele, que parecia o Pinóquio, um centroavante do futebol de mentira, retranqueiro. E o Pinóquio foi lá e bucha. Lá na Colônia ou na Cohab, se tu virasses uma bola daquelas, os companheiros te enchiam de osso. Se aparecesse um adversário magrelo, pegasse a bola e fizesse o gol, tu tinhas de correr para não apanhar. Mas claro que numa seleção de futebol arte, com Sócrates, Zico e Falcão no meio campo, Leandro e Júnior do Flamengo nas laterais e Éder ex-Grêmio na ponta esquerda, ninguém ia lá dar uns merecidos petelecos no Cerezo. O Serginho Chulapa, centroavante brazuca, era o cara barra pesada que poderia fazer isso, mas estava humilde na seleção, sem moral e liderança para se impor, pois era o pior da linha. Curioso, só agora me dei conta que os dois pontos fracos do Brasil 1982 eram o goleiro e o centroavante, ambos do São Paulo. E o Cerezo depois jogou no São Paulo!

1x0 Itália. 1x1 Brasil. 2x1 Itália. 2x2 Brasil. O empate servia para o futebol arte brasileiro, mas pressionávamos a retranca da A Burra em busca da vitória e da goleada, nossa vocação. Pois numa bola que respingou na área, tava lá o Paolo Rossi pescando e bucha de novo: 3x2. Fazer gol pescando, coisa de jogadorzinho de futebolzinho mesmo. Se fosse lá na Colônia ou na Cohab isso, o cara perderia o respeito dos outros boleiros, pois pescador era um dos tipos mais vomitativos e escrotos que se via no futebol de vila ou bairro. Ninguém dizia que tu não podias ficar pescando lá na frente, tu tinhas de saber disso e não fazer, devia jogar como homem, não como moleque. E, se tu fizesses o gol pescando, ninguém diria nada, sem críticas ou elogios, apenas te olhavam com o merecido desprezo e pena, eis que tu eras um ser menor, desprovido de ética e honra futebolística, espírito avesso aos deuses do esporte bretão. Confesso que eu fiz uma vez um gol pescando, quando era guri, piazito. Quase morri de vergonha depois, foi a primeira e última vez. Pois o Paolo Rossi fez, mas ele era italiano, né, jogador da seleção mais fraudulenta do futebol mundial, que praticava o antijogo, o antifutebol, os uruguaios da Europa, piorados.

Mas tudo bem, eu tomando Ki Suco de uva com gelo que a tia Dione tinha me dado e esperando o Brasil vingar aquela ignomínia do Pinóquio da A Burra. O Sócrates, o gênio e líder da Democracia Corinthiana, cabeceia pra baixo uma bola na pequena área italiana e o velhote consegue defender. Bom, se tinha uma posição onde a Itália se esmerava por necessidade absoluta de seu medíocre futebol retranqueiro, era o arqueiro. E o velho - que, ironia, se chamava "Dino", Dino Zoff - defendeu. O Ki Suco de uva começou a amargar na minha boca. Os minutos passando e o Brasil nada de empatar, virar o jogo e meter mais uns 14 na cola daquelas nabas italianas. Acabou o jogo. Como assim? The dream is over, como nos Beatles? Inacreditável. Foi, com certeza, a maior decepção da minha vida até então. Reversão total de expectativa. A TV colorida dos meus tios parecia um jardim de cemitério, bela e funérea. E o pequeno Joãozinho chorou, chorou como os guris choram, os guris que ainda viram jogo na frente da área defensiva e fazem gol pescando. Chorou e foi para casa pedir amparo para a mãe, como os piazitos indefesos e ingênuos, que ainda não conhecem nada da vida, fazem. Um pesadelo a cores era pior que um pesadelo em P&B. Era mais real, mais vivo, mais tétrico, mais doído. Nunca mais esqueceria esse nome: Paolo Rossi. Só quando, no dia do meu aniversário, 24 de junho - eu e o Messi - de 1990, estava na garagem de casa e vi o Maradona meter uma bola para o Caniggia pelo meio das pernas do Mauro Galvão e do Ricardo Rocha, eu tive uma decepção parecida com a Seleção. O argentino entrou na cara do Taffarel - que deve tê-lo visto como um Jorge Veras loiro -, tirou-o do lance e meteu a bola dentro do gol. Argentina 1x0 Brasil, eliminando-nos.

Bom, eles passaram pela Polônia - ah, quem não passa pela Polônia? - e o Paolo fez mais dois gols naquele jogo, pois a Itália começou a achar que era uma boa essa coisa de usar centroavante em futebol e o Rossi acreditou que era goleador - como dizem, a fé remove montanhas, até o Vesúvio. Chegaram à final contra a Alemanha. Bom, agora seria o fim deles - pensei. A Alemanha, ao contrário da Itália, possuía um futebol digno de respeito, de ser chamado por esse nome. O raio não cairia duas vezes no mesmo lugar. Caiu. Itália 3x1 Alemanha. Puxa vida, o que houve com o futebol mundial? A Itália retranqueira campeã do mundo, como assim? Isso só poderia acontecer na Espanha mesmo, outro país saco-de-pancadas do futebol, outra fraude, nome sem sobrenome, realeza sem título - ao contrário da Inglaterra, que tem título, só que roubado também. Mas aconteceu. E eu passei a achar que os meus paradigmas sobre a vida, o futebol e a Itália deviam estar errados. Não pensei na palavra paradigma, claro, mas em algo nesse sentido. Paolo Rossi ajudou o pequeno Joãozinho a começar a amadurecer em 1982, fazendo-o ver que a vida era mais complexa e colorida do que a Teleotto P&B do pai lhe mostrava. Quando, em 1994, o Brasil venceu nos pênaltis a final contra a retrancada Itália de Roberto Baggio - grande craque -, eu já não era mais o mesmo.

Pois agora a Itália foi mais uma vez campeã do mundo, em 2006 - com um zagueiro sendo o líder da Azzurra, Itália sendo Itália -, a Espanha também já beliscou um mundial em 2010, a gurizada usa mais camiseta de time italiano, espanhol e inglês do que a do Grêmio e do vermelhinho, o Sarriá foi demolido, a geração Sócrates/Zico/Falcão nunca ganhou uma Copa, Sócrates morreu, Maradona morreu, a Argentina foi bicampeã em 1986 roubando com um gol de mão e sendo roubada em 1990 com um pênalti inexistente na final - a banca paga e a banca recebe -, a Seleção Brasileira foi penta campeã em 1994 (sobre a Itália) e 2002 (em cima da Alemanha) e levou 7x1 da Alemanha em 2014, no Brasil, a tia Dione e o tio Glênio se separaram, as TVs coloridas agora são grandes, finas, digitais e em alta definição, nem sei se ainda existe Ki Suco, nunca mais vi a "...", não jogo mais futebol e nem corro para o colo da dona Ivone, nunca mais assisti jogo em dia de aniversário e o seo Nery, aos 84, usa Iphone e Internet e minha filha é vermelhinha.

E o Paolo Rossi morreu, ontem, aos 64, 20 anos a menos que o seo Nery, uma lástima. O pequeno Joãozinho o achava uma grande naba, o Pinóquio italiano da seleção fraude, A Burra. Valeu pela lição de humildade, Paolo, fazendo ver que o preconceito é arrogante, cheio de si, mas, ele sim, é burro, e a vida é muito mais do que ele sugere. Deus o receba nos gramados celestes junto com o El Pibe de Oro, Bambino de D'Oro. Essa crônica expressa meu respeito e admiração póstumos por você e pelo futebol de seu país.