Batalha dos Aflitos: 15 anos

Dei um coice. Não pontapé, coice, que nem cavalo, pra trás. Fiquei furioso quando a bola bateu no braço do volante Nunes do Alegrete e o juiz ladrão deu pênalti contra o Grêmio, aos 35 do segundo tempo. Quando o lateral Patrício de Aratiba foi reclamar e o árbitro também o expulsou, surtei e dei o coice. Que coice! Baita coice! Só não quebrei o pé porque tava de coturno. O coice místico do Dragão de Shaolin, o coice do Chuck Norris. Não podiam roubar o Grêmio desse jeito, ao final do último jogo da Série B! Não podiam lesar os gaúchos dessa forma, lá no Recife!

O lateral esquerdo Escalona do Chile já havia sido expulso, e agora o Patrício de Aratiba. Os jogadores do Tricolosso enlouqueceram em campo, assim como eu em minha sala. A escrivaninha desmontou com o coice. Nos 25 minutos de tumulto que se seguiram, o canalha de amarelo ainda daria o ignóbil vermelho para o zagueiro Domingos da baiana Muniz Ferreira e para o Nunes. Quatro expulsos!?!? LADRÃO!!! CANALHA!!! F/!#@ ]@ ?>+@!!! Bradava feito um ensandecido. O empate servia para o Grêmio subir, tem que mais um provocar a expulsão agora, invalidar o jogo e ir para os tribunais - pensava. Eram apenas 7 em campo, agora, e com uma penalidade contra! NÃO, não podia, assim NÃO, dessa maneira, NÃO!

Terminou o tumulto e vi que o jogo ia continuar e que o pênalti seria cobrado. Aí bateu o desespero. Cabeça vazia, oficina do tinhoso. Comecei a pensar... Se o cara faz o pênalti, como é que fica? O Grêmio já tá quebrado, se ficar mais um ano na B, vai falir. Lembrei da letra de uma canção de Lupicínio Rodrigues - autor do hino gremista - "Eu não sei se o que trago no peito É ciúme, despeito, amizade ou horror Eu só sinto que quando a vejo Me dá um desejo de morte ou de dor". E eu a estava vendo naquele momento, a derrota e a derrocada do Grêmio. Tive medo, um medo pleno, quase pavor. Imagina, o mundo sem o Grêmio? Como eu poderia viver num mundo sem o Grêmio? Somente colorados e sua empáfia, pelo resto dos meus dias? Colorados repetindo pelo resto da vida GrenaU, GrenaU, GrenaU? NÃO, ISSO NÃO! Vou matar todos os colorados! Não, melhor não, são muitos, milhões, não tem como, vou ter de conviver com a desgraça e com a vergonha. Não sei como, mas vou. Ainda mais que minha mãe, mulher, filha, irmã, tias e primas são todas coloradas. Desisti dessa ideia maluca, impraticável e vergonhosa.

Era o segundo pênalti roubado que o facínora amarelo assinalava contra o Tricolor. No primeiro tempo o cara cobrou e mandou no poste. O único pênalti que o Grêmio realmente fez, quando o goleiro Galatto de Porto Alegre derrubou mesmo o adversário na área, ele não apitou. Dou esse desconto pro amarelo do mal. Então estava lá eu, paralisado de medo e horror pelo futuro desolador, vendo outro jogador do Náutico se posicionar para a cobrança. E aquele comentarista da Globo vá azarar o Grêmio, dando a extrema unção e já abrindo a cova do moribundo: "O Grêmio ficará na segunda divisão mais um ano, vai quebrar, agora". Ainda respiramos, seu corvo, seu urubu! Mas bah, que vontade de surrar aquele cara.

Era outro agora que bateria, o camisa 6 do Náutico. O comentarista tripudiando o Grêmio: "Com sete contra onze tentar empatar é difícil, eu diria impossível". Eu em estado de pavor e o camisa 6 lá, parado. Comecei a notar que o cara tava nervoso, ficava a todo momento virando o rosto para trás. Senti uma ponta de esperança. Esse cara vai errar. O 6 não tomou muita distância, não correu muito e bateu...

(centésimos intermináveis)

...GALATTO!!!! Defendeu, tirou com o pé para escanteio! O comentarista: "E agora veja o prejuízo daqueles jogadores que foram expulsos". Praga! Agourento! Grande Galatto, olha, eu não votei em ti pra deputado estadual em 2018, mas sou muito grato por essa defesa que tu fez, cara. Tá, erraram o pênalti, mas e agora? Eram só 7 contra 11, como segurar os pernambucanos nesses dez minutos? Cobraram o escanteio e o que sobrou do time do Grêmio afastou o perigo da área. Eram só 7, mas o 7 é um número de sorte para o Grêmio, pois o 7 era de Tarciso e era de Renato, oras, o 7 era dos maiores campeões tricolores! E o garoto Anderson de Porto Alegre, de 17 anos e com a camisa 17, corre com a bola pela esquerda, passa para um companheiro e avança para o ataque, recebe na frente e dribla o Batata.

Eu esqueci o nome do juiz, do comentarista, dos caras que erraram os pênaltis, mas o do Batata eu ainda lembro. Deu uma entrada no Anderson já sem a bola e o monstro amarelo expulsou ele. Colocou o Batata pra fora só para fazer média, o canalha. Falta no ataque, dá para matar uns minutos aí - pensei. Entretanto, o que nem eu, nem o ladrão, nem o agourento e nem ninguém pensou ou esperava é que o Anderson ia receber a cobrança rápida da falta, driblar a zaga do Náutico, entrar na área e desviar com a esquerda na saída do goleiro. GOOOOOOLLLLLLL DOOOO GRÊÊÊÊMIIIIOOOO!!!!

Fiquei em choque. Não conseguia vibrar. Nunca tinha visto algo igual na vida e acho que dificilmente verei de novo. Inimaginável, inacreditável aquilo. Inacreditável, era isso o que esse time do Mano Menezes era, inacreditável. Anderson, um milagreiro. Estava estupefatamente feliz. Numa vez em que o Grêmio do Felipão empatou com o Flamengo (aquele do "Sávio Romário Edmundo, melhor ataque do mundo") com dois jogadores a menos e estando 2x0, o Fábio Koff disse que aquela equipe era sobrenatural. Então o Grêmio do Mano era inacreditável, fizera o impossível realidade. Agora o agourento dizia: "Eu achava impossível acontecer. O que eu achava impossível, aconteceu". É, sei. O time e a torcida do Náutico ficaram quietos, abatidos, vencidos, entregues. Bem feito, mereceram. Trataram muito mal e delegação gremista em Recife, foram muitas hostilidades e sacanagens, como pintar o vestiário que seria usado pela Grêmio no Estádio dos Aflitos no dia do jogo. Tiveram sua merecida aflição. E dois portoalegrenses foram fundamentais para o titulo do Grêmio Foot Ball Porto Alegrense.

Ah, Anderson, Anderson. O meu cunhado mais novo diz que o Anderson é único o jogador que, jogando de azul e de vermelho, deu duas grandes alegrias para o Grêmio: foi heroicamente decisivo em tirar o Grêmio da Série B e tragicamente decisivo em ajudar o Inter a ir pra ela, eh eh eh eh eh. E com aquele 1x0 o Grêmio foi épico e foi campeão, vencera a Batalha dos Aflitos, um jogo tenso antes mesmo de começar. E campeão do Brasileirão B não é pouca coisa não, o Grêmio foi um dos dois clubes gaúchos que lá esteve e levantou a taça...

Ser campeão da Série B do Campeonato Brasileiro é feito para CLUBES GRANDES como Grêmio, Corinthians, Atlético MG, Botafogo RJ, Palmeiras, Vasco da Gama, Atlético PR, Curitiba, Paraná Clube, América MG, Bragantino, Guarani, Sport Recife, Vila Nona, Atlético GO, Fortaleza, Londrina, Portuguesa de Desportos SP, Paysandu, Tuna Luso, União São João, Sampaio Corrêa, Gama, Brasiliense, Criciúma, Campo Grande, Joinville, Juventus, Uberlândia, Juventude RS e Internacional - o de Limeira, não o de Porto Alegre. Só clube grande venceu a segundona...

Era isso então. Sempre delicioso relembrar um feito épico, inesquecível e inacreditável, onde o impossível aconteceu. Eufórico e aliviado após o apito final, olhei para a escrivaninha desintegrada pelo coice e pensei: Ih, tenho que arrumar essa droga.