(Meadowbrook Care  Center - Cincinnati) Esta Cronica escrevi em 2008.
Trabalhei como voluntaria ate 2015. Havia planos para voltar Fevereiro
deste ano, infelizmente nao pude cumprir pela Pandemia. 


CAMINHANDO COM MEUS VELHINHOS

Um dia chegaremos lá. E eu espero estar com uma cabeça boa, sorrindo para a vida, e para todos em minha volta. Não quero tristezas, nem recordaçoes que nao valham a pena. Quero olhar para trás sem arrependimentos, e olhar tudo de bom que eu fiz.
Trabalhar com esses velhinhos tem me feito tão bem! Quando entro naquele lugar, me sinto movida pelo meu coração. Algo aqui dentro de mim se move. Muda. Recicla.
Meus olhos se deitam em tudo de uma forma completamente diferente. Nao sei explicar. Mas um grande sentimento se apossa de meu coração. Passo a sentir mais, de uma forma absoluta.

Ontem foi a festinha de aniversario do mes. Gosto tanto desse dia, porque a maioria dos velhinhos que nao saem do quarto, vao para o restaurante. Vem um pianista tocar musicas, e de repente todos viram um pouco crianças... a gente nota o pé batendo no chão, e o olhar sonhador, com alguma lembrança do passado.
Comem bolo como crianças, seguram o copo de suco como minha filha segurava quando era pequena. Como se o mundo inteiro se resumisse naquele pedaço de bolo, e aquele suco. Alguns dormem na mesa, pelos remédios, ou mesmo pelo cansaço. Mas querem participar.
Nessa foto, voces podem ver mais ou menos o ambiente.



Este homem de camisa branca e bonézinho, é aquele cego que falei dele no meu post há tempos atrás. Impressionante como este homem dá uma injeção de otimismo. Sempre sorrindo, de bom humor, de bem com a vida, como se enxergasse tudo colorido. Nas festas ele canta, ri, bate palmas. Ao lado dele, de camisa xadrez, o companheiro dele, Mike, jantam sempre juntos, fumam juntos lá fora depois do jantar.
Adoro servir a mesa dele! Tenho sempre que dizer a ele o que tem no prato, e independente do que seja, ele sempre acha bom, e agradece. Mesmo sem enxergar o mundo, este homem consegue ser grato.
Um dia ao chegar no seu quarto com o suco, mal entrei e ele disse: "Maria!" 
E eu disse: "Como voce sabe que sou eu, Bill?" Ele diz: "Pela sua energia".
Depois me perguntou: "posso tocar seu rosto?" E eu disse: "Claro Bill!" Ele com o dedo desenhou todos meus tracos, passou a mao nos meus cabelos e disse: "Agora ja pintei seu retrato na minha mente". Bill era ingenuo, transparente, e enxergava com a alma.
Enquanto ele contornava meu rosto, eu fiquei quase sem respirar. Foi um momento tao terno!

Mas uma velhinha que tenho verdadeira paixão é a Elizabeth. Tem algo nela  que nao sei explicar, mas me puxa em sua direcao. Sempre arrumadinha, com o chapéu combinando com a roupa. E tem uma voz muito dela. Um jeito de se expressar muito especial.
Eu chego e ela diz: "Hi!!!!! What do you know?" Uma expressao que os americanos usam para dizer: "Ola! conte as novidades!".
Sento com ela em sua cama, e ela conversa. Ela escuta pouquissimo, levo meu caderno, escrevo, e ela responde. E assim fico conversando em seu quarto. Dessa ultima vez ela contou suas viagens com seu marido, e falou das borboletas. A Laura adora borboletas. Tem um quadro com uma borboleta colorida, em cima de sua cama. Perguntei porque. Ela disse que gostava do colorido delas, e do modo que elas voavam livres. Falou-me das borboletas no campo. E eu parecia enxergar a beleza da descrição. E ela escreveu no papelzinho: "tenho saudade do tempo que eu era livre".  E eu escrevi de volta: 

(Elizabeth: voce eh livre em seus pensamentos. Somente use sua imaginacao!" E nao posso esquecer do sorriso aberto que ela me deu.

Quando sirvo o jantar no restaurante, ela me pede café a toda hora. Ela adora! Entao dessa ultima vez, tirei sua foto tomando café usando o chapéuzinho novo que ela colocou. Vejam que gracinha:



Essa e a foto anterior dela:



Ela sempre me conta as coisas de um modo detalhado, muito proprio dela. Tenho um carinho imenso por ela.

Em cada lugar que vou ali, tem uma historia.

Comove-me sobremaneira um homem que vem todas as tardes sentar com sua mulher para jantar. Ela teve derrame. Ele senta pacienciosamente com ela, e dá a comida na boca. Quando coloco a comida na mesa, ele diz para ela: "Hummm que delicia, veja!". Ela olha como se seu olhar nao estivesse ali.... e ele sempre com aquela paciencia. Mostrando-se alegre. Mas muitas vezes eu capto seu olhar distante na mesa, olhando por um momento para o vazio.
Um dia desses eu vi a fotografia deles quando jovens. Está pendurada no corredor onde tem os quartos. Um casal bonito, alegre, sorrindo abraçados.
Então por um instante a gente tem um rapido sentido da vida. Das mudanças.

Continuo visitando tambem o Norman.



Ele sempre me conta historias interessantes de vida. Outro dia estava contando o quanto gostava de cozinhar para os filhos. E queria muito que eles comessem espinafre. Entao inventava receitas diferentes. Fala de receitas, de guerra, da familia, dos netos, dos filhos. Tem uma memoria invejavel! Muito lucido, nao se esquece de pequenos detalhes. Gosta de falar da Guerra em que esteve. Dos amigos que perdeu. Das medalhas que ganhou. Quando saio de seu quarto, levo sempre comigo papeis que ele me da.
Esta e a sua foto quando lutou na 2a. Guerra Mundial.


(Norman morreu em 2013).

Visito tambem aquela mulher que perdeu o marido com derrame cerebral. A semana passada eu havia ido visitá-la e encontrei sua cama arrumadinha, e ninguem no quarto. Levei um susto, achando que havia acontecido algo com ela. Mas ela havia ido ao funeral de sua irma que havia morrido. Nessa semana entao fui visitá-la e me preparei interiormente para ouvi-la, e dizer umas palavras consoladoras. No entanto ela estava bem. Vejo que Deus nos dá uma compreensao acima dos limites nessa idade. Tudo parece uma decorrencia normal da vida (e é !) mas que é aceita de um modo mais facil e simples do que quando somos jovens.

Essa é a foto dela, no dia do seu casamento. Amo essa fotografia!



Eu me emociono com a ingenuidade dela, quando me conta que ela o conheceu com 16 anos, foi seu primeiro e unico namorado. E ela descreve quando o viu pela primeira vez, ela estava numa estação de trem, e que ele veio falar com ela. Seus olhos sempre brilham com essa lembrança, e ela sempre repete essa historia como se fosse a primeira vez que estivesse me contando. E o engraçado é que toda vez que eu a escuto, parece mesmo a primeira vez, pelo brilho de seus olhos, pela empolgação meiga de suas palavras.

Sinto-me util. Sinto-me necessaria naquele mundo onde muitos estacionaram. E eu me sinto me movendo, e de uma certa forma, trazendo alegria a eles. Brinco muito. Sorrio muito. Exercito minha paciencia. E sempre agradeço por Deus ter me colocado naquele lugar e me fazer enxergar coisas que nunca enxerguei.

 
Mary Fioratti
Enviado por Mary Fioratti em 19/11/2020
Código do texto: T7115630
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