Refletida


Ela queria muito, sempre quis muito e, sem saber ao certo o quê, suspirava nas investigações diárias frente ao espelho. E, porque suspirava muito, pouco falava e pensava rápido e isso cansava. Por vezes lhe doída o corpo como se uma lança a atingisse oblíqua no dorso, o querer lhe doída como uma farpa no dedo, como um ar preso no peito; e uma dor fina atravessada puxava o fio do desejo. Ela se perguntava: quando?... e o pensamento corria em busca de resposta, e isso era como o vento que tudo espalha, folhas, pétalas, grãos, papéis sobre a mesa, cinzas, cabelos, o sopro no coração... ela suspirava. As mãos no peito investigando as sardas, heranças de um sol sem jeito, acanhado, acabrunhado pela força do vento.
Ela perdia horas frente ao espelho, os olhos nos olhos se perdendo, ela se perdia, perdia o fio da meada e recomeçava num suspiro mais forte de impaciência: quando?... mas o que seria nesse quando que não saía dos seus olhos de interrogação? E o seu rosto se tornava altivo e ela sabia: quando se tornasse plena, plana e serena como uma garça que com tanto céu encara o mar abrindo suas penas. Mas como faria prá se lançar, prá encarar o que não é espelho? A pergunta crescia e o seu desejo também, ela respirava cada vez mais fundo, fechava os olhos e suspirava o mundo, como se suspira no alto de uma montanha e numa visão de trezentos e sessenta graus se deseja o que se vê: a natureza viva. E ela queria a sua cada vez mais viva, a brisa da vida entrando nos poros, encarando outros espelhos que não os dela, seus olhos refletidos em outros olhos refletindo o inalcançável infinito de si mesma.




(imagem: foto de Erick Kellerman)