Carta para ler aos oitenta e oito anos [mais ou menos]
 
Nós, andarilhos, sempre buscando um caminho mais solitário,
não começamos nenhum dia onde terminamos o dia anterior;
e nenhuma aurora nos encontra onde o crepúsculo nos deixou.
[...]
Breves foram meus dias entre vós,
e ainda mais breves, as palavras que disse.
Mas se a minha voz esmaecer nos vossos ouvidos,
e meu amor desaparecer de vossa memória, voltarei,
E com o coração mais rico e com lábios mais generosos,
ao espírito falarei.
(Khalil Gibran)

     Então, de repente, imaginei-me velho. Sem mais, estava eu com oitenta e oito anos. Puro lucro, pois a Escritura diz que os mais fortes talvez cheguem aos oitenta. E duas perguntas surgiram, naturalmente, nessa minha mente (de agora): o que terei aprendido? O que terei a aprender?

     “Oitenta e oito anos. É muito tempo, mas como passou rápido, meu Deus...”

     Ainda falta mais de cinquenta para que a frase anterior seja real, e não consigo impedir em nada que ela retarde sua chegada, tampouco, acelerar o tempo de modo que ela aconteça antes. Tudo ao seu tempo: meus já vividos trinta e tantos, meus restantes cinquenta e poucos. Dia após dia. Sucessivos e constantes carpe diem.

     Ao escrever estes pensamentos, saltitando entre o tempo presente e o tempo futuro, lembrei de Adélia Prado e fui conferir para lhe ser fiel. E era bem como pensava: “Meu Deus, [...] me cura de ser grande”. Só não sei se então, ao cabo da vida, terei voltado a ser aquela criança do Rubem Alves, feliz por ser ostra sem necessidade de fazer pérolas. Mas, devolvendo-me ao meu tempo presente, meu interior sangra por temor de não ser curado da pretensão nada poética, nada evangélica do querer ser grande.

     Imaginar meus oitenta e oito leva tempo. É penoso percorrer esse caminho todo, viaja-lo sem saltar estações, sobrevive-lo com suas dores, não poder eternizá-lo em seus dias de plenitude, imaginar suas possíveis lágrimas, sorrir seus encontros sabendo ter que recolher-me após. Contemplar nascimentos. Sepultar vidas findadas. Experimentar o vazio da ausência, preenchido pela grata recordação dos dias vividos juntos. Não conseguir prever consequências, evitando, assim, escolhas erradas. Sofrer as consequências, frutos de erros tão bobos, tão egoístas, tão adultos. Demorar tanto para fazer as malas das mudanças, por ter acumulado em demasia o supérfluo. Recomeçar tantas vezes quantas forem necessárias, para conseguir ser livre. Aprender.

     Quisera poder, às vésperas dos oitenta e oito, prestes a saltar definitivamente para a eternidade, deixar este testamento para os que sentirem minha falta: “Se eu estiver morto depois de amanhã, a trovada de depois de amanhã será outra trovada do que seria se eu não tivesse morrido. Bem sei que a trovoada não cai da minha vista, mas se eu não estiver no mundo o mundo será diferente – haverá eu a menos – e a trovoada cairá num mundo diferente e não será a mesma trovoada. Seja como for, a que cair é que estará caindo quando cair.” E, ainda com os versos do Alberto Caeiro, de olhos fechados, concluir: “Como uma criança antes de a ensinarem a ser grande, fui verdadeiro e leal a tudo o que vi e ouvi.”