Vorta, Chico!
Acordo com o canto encorajador dos joões-de-barro. Um dia a mais é também um dia a menos, mas o sol brilha e é preciso fazer coro com essas aves felizes. Da janela do apartamento, vejo-os ciscar na rua, confiantes na vida, na fidelidade matrimonial e em seus dotes de arquitetos e pedreiros. Como os outros passarinhos, transitam tranquilamente pelas cidades, confiantes nas leis ambientais. Caminham com seus passinhos de modelo sem medo dos humanos, dão uma paradinha e arriscam até um olhar atrevido, parecido a um “quem é você? Ou “acho que te conheço! ”.
Porém, nem sempre foi assim. Na minha infância os tempos eram de bodoques, gaiolas, alçapões, “fritadas”, quando a criançada matava ou aprisionava passarinhos, imitando os mais velhos. Para matar e comer, as armas eram pedras, bodoques e as espingardinhas conhecidas como “mijoleiras”, destinadas às rolinhas e juritis. Para aprisionar, havia arapucas, gaiolas, alçapões e visgo de gameleira à espera dos passarinhos cantores e os de briga. Eram os canários, curiós, sanhaços, passo-pretos e o mais famoso dos prisioneiros, o assum-preto, cujo sofrimento foi eternizado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.
Mas havia um passarinho engaiolado que parecia feliz: era o passo-preto do seu Zezé, morador ao lado capelinha do Bom Jesus de Pitangui. Bem tratado, o passo-preto não reclamava da sorte como o assum-preto acima referido, pelo menos no entender dos vizinhos. Chico, seu nome, cantava lindamente, tinha fama até de imitador do canto de outros pássaros, assim como fazem as cotovias do norte, os "Mymus polyglottos", famosos replicadores dos cantos alheios.
Seu Zezé, o dono, tinha muita história com o Chico. Na sua hora de almoço, vinha em casa e dividia o tempo com a boia e os cuidados do passo-preto. Antes de voltar para o trabalho, verificava a comida, as portinhas, os araminhos, assobiava um pouco, Chico cantava, na hora de sair seu Zezé dava um tchau, dizia "volto da fábrica às seis horas", juram que o Chico respondia.
O filho caçula de seu Zezé, o Neném, de uns dez anos, se encantava com o Chico e queria dividir aquele sentimento com o amiguinho Bartô, vizinho de frente. Queria provar que o passo-preto Chico, preciosidade de seu pai, rouxinol caipira, além de cantar violinicamente, também era ensinado, como todos diziam. Para provar, ele abriria a gaiola, o Chico passearia pela redondeza, sobrevoaria a capelinha, daria uma volta pela área, porém, ao primeiro chamado do Neném, o Fígaro alado regressaria voluntariamente à prisão.
Tudo visto e checado, um incerto dia, Neném esperou o pai almoçar e sair. Tinha chegado o dia: Bartô morava perto, a um assovio do Neném lá vem o amiguinho assistir finalmente ao show há tempo anunciado. Neném, dono da festa, abre a gaiola, espera Chico decidir-se a sair - pássaro mansinho não sai fácil de casa. Depois da hesitação inicial, enfim saiu, tomou impulso na mureta do alpendre e ganhou o espaço aéreo circundante em direção à cruz de metal da capelinha, ali ficou uns instantes, deu outro impulso e sumiu por cima do casario.
Naquele instante, Neném olhou para Bartô e, ainda sem nenhuma razão, lhe disse:
- Deixa ele vuá. Daqui a pouco eu chamo, ele vorta. Ele é ensinado.
Passou meia hora, Chico não voltou. Passou uma, duas horas, aí Neném já chorava e Bartô, depois de encarar o amiguinho, abriu também o oboé, pura solidariedade infantil. Afinal de contas – pensavam em defesa própria - não haveria fuga, um passo-preto mansinho e tratado a pão de ló não teria razões para fugir. Portanto, era só questão de paciência, Chico voltaria.
- Daqui a pouco eu chamo, ele vorta - insiste o Neném com os olhos avermelhados.
Mas não “vortô”: o passo-preto deve ter encontrado alguma pássara mulata ou loura e desapareceu. Ou, pior, poderia ter sido comido por um dos dezesseis gatos de Dona Deolinda, vizinha do Beco dos Canudos. Ou, quem sabe, assado pelo estranho Aristeu, filho de Dona Sinhana, também vizinha do Beco, famosa por ter nascido escrava, dizendo o povo. Duas horas depois, Neném ainda zanzava pela área: Rua da Cruz, Beco-sem-Saída, Bica da Gameleira, Rua da Paciência, os olhos vermelhos de chorar, acompanhado pelo fiel Bartô, de gaiola de porta aberta na mão, toda oferecida, implorando a volta do Chico.
- Chico, Chico, alguém viu um passo-preto cantador, alguém viu, Chico, Chico... Vorta, Chico!
Debalde: Chico não aparecia. As lágrimas finalmente desceram em catadupas pelos olhos do Neném, mas Chico não se comoveu, não voltou. Neném nunca contou se ganhou uma surra – provavelmente sim. O Chico era imbatível no canto, fama de um rouxinol tropical, seu pai não o perdoaria. Nas últimas vezes que o vi, de relance, não tive oportunidade de conversar sobre o Chico. Nem sei se convém: poderia abrir uma ferida já cicatrizada. Mas sei que não vou resistir. Da próxima vez, hei de perguntar:
- Neném, e o Chico: vortô ou não vortô?
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