De volta a antigamente
Cinco horas. O sol começando a cair, mas dia ainda muito claro e calorento. O corpo inda quente do banho frio. Uma brisazinha vinda de todo lado, adentrando-lhe os ouvidos como corcéis gelados. Lembrança do mar. A vida ganha, o trabalho encerrado, agora pegar um Dostoievsky e esperar a noite vir, que a noite sempre vem. E, antes dela, as rosas do crepúsculo, o cair de mansinho, o Ângelus, tudo outra vez como antigamente. E agora para sempre.
Onde aqueles sonhos de Quixote, aquelas investidas no vácuo, um cavalo de gengivas sangrando de morder inquietações, na busca do-que-não-sei, uma volubilidade constante no progresso?
Sempre tem serra depois de serra. Mas de que adianta alcançar a que se vê se se vai continuar sempre a desejar a que se verá? E sempre assim, e sempre assim. O sonho de ir à Lua. Mas ir à Lua equivale a derrubar a última barreira de ir a Marte. E sempre haverá um lugar pra se desejar ir: Júpiter... E Urano... E Saturno... E Plutão... E mais andara se outros inda houvera.
Não, chega disso, que só lhe dá cansaço. Que a resposta tanto não reside lá, como não reside aqui. Não, é hora de recolher. De baixar armas. Que o vento é o mais sábio dos capitães de mar. Deixai-o soprar para onde queira.
Melhor olhar a casa. O jardim, a grama verde bem regada e aparada, algumas roseirinhas e abelhas curiosas, o par de ciprestes imponentes como diplomatas... A simplicidade dos móveis, o riso dos guris, a conversa fiada da mulher fiada no seu bom humor constante da vida simples, os cumprimentos iguais de todo dia dos vizinhos à saída para o trabalho... tudo igual, tudo o mesmo. Tudo o mesmo, mas sem fazer o mal de antigamente, na outra vez.
E se lembra de um tempo já bem remoto, uma tarde calorenta e clara, uma terra distante, uma correria louca, uma poeira vermelha num redemoinho e uma aula de não-sei-que, talvez de gramática ou sociologia. Daquele tempo em que se aspirava a ser escritor. A Bonaparte. A qualquer Gandhi. A dinossauro.
E tendo um sorriso de tolerância para consigo mesmo, abre a camisa do pijama e recomeça a procurar um carrapato renitente.
(Jeddah, Arábia Saudita,29/09/1975)