Solidários são os urubus egoístas
Esta ânsia. Esta dor fiel como um cão de caça, sempre atrás de mim, onde esteja, não importa que idade eu tenha. Deveria dedicar toda minha vida a sobrepujar isso aí. Ou então, transformá-lo em monumentos escritos, sem qualquer intenção vaidosa, mas apenas por catarse, porque, do contrário, a gente estoura.
E tal ou qual deve ser a dor de meu pai. Da velhice ainda envindo de minha mãe. Das pernas de Aracnenina, dentro em breve varicosas e magrelas, secas que só taquara morta. Das garotas da faculdade, já se adivinhando no viço dagora o rosto afilado da hora da morte amém. Da música dos meus ídolos, tão eternas quanto uma tarde de domingo, sentidas que só elas, conscientes que são nada, só o trem que chega, para, vomita e engole passageiros e segue, segue nos trilhos sinuosos.
Nos trilhos sinuosos, vai o comboio das gentes. Veloz como um falcão, obstinado e concentrado como um violinista, aí vai o comboio das gentes. Para-se poucas vezes. No entanto, ninguém jamais tem a consciência do significado das viagens nem da velocidade de luz em que se vai.
De vez em quando, a parada. A estaçãozinha da Água-Suja. Numa tarde de domingo, por exemplo. Está-se cansando de “Les Frères Karamazov”, cansado de parlamentar. De tentar convencer. O vento vem, com língua de ponta no corpo da gente, a fazer a tarde de domingo ainda mais insuportável. Calor. Calor e algumas moscas teimosas como lembranças de fracasso.
A tarde de domingo de agora é como a estaçãozinha em que se medita sobre o todo da viagem. O vento, desatento da gente, a cutucar feridas. Tudo o que não se fez, tudo o que não se vai fazer nem alcançar, porque o tempo voa. A viagem à Lua (como seria bom viajar à Lua), mas não será nesta geração. A viagem para dentro da gente mesmo, que parecia fácil, encontra obstáculos insuspeitados.
Na tarde de domingo, que serviu de estaçãozinha para meditação, alguém tem dificuldade para aceitar a separação. O amigo mais próximo – aquele ali – não está ali. Está a léguas e léguas de deserto e a areia quente é mortal. Mas assim mesmo, lanço cordas para todas as ilhotas, todos os oásis, onde possa ainda ter amigos e amigas e tento trazê-los para ler os livros que ainda não escrevi.
Mas quá, que tolice! Como me enganei! Quando chegam laçados, trazidos à força, não são mais que bonecos de palha de milho. E dizem algo parecido com “os amigos morreram. Olha, há nas ilhotas e nos oásis apenas urubus egoístas. Olha, os amigos morreram, sobraram urubus egoístas”.
Em determinados graus de solidão, a gente aceita até conversar com urubus egoístas. Venha a nós o reino deles, agora e na hora.
(Brasília, DF, 01/05/1975)