Carta sobre risos e choros: contrastes edificantes e humanos

A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
(Fernando Pessoa)

A gente sempre acha que é Fernando Pessoa.
(Ana Cristina Cesar)

Como eu não sei rezar,
só queria mostrar
meu olhar, meu olhar, meu olhar
(Renato Teixeira)
 
     Marcada por contrastes, assim é a vida nesta terra. Diante de tantos – sim e não, noite e dia, vida e morte, silêncio e ruído, água e fogo, frio e calor, preto e branco, verde e maduro... – há dois que são próprios nossos, Deus reservou apenas para os seus filhos: o riso e o choro. Mais que isso. A consciência deles, o momento plástico de cada um, a sua hora. Não há espaço para risadas diante duma tragédia, assim como não condiz o choro triste com um momento de efusiva alegria. Se houver alguma risada associada a qualquer que seja o drama vivido, ela só pode ser, desprezivelmente, de deboche, de ironia, de desprezo, de insensibilidade. Por sua vez, olhos lacrimejantes não são bem-vindos quando os momentos pedem extravagantes risadas. Apresentar-se-iam inconvenientes, deselegantes.

     O que é mais fácil: sorrir ou chorar? Falo de um sorriso que brota da felicidade plena, verdadeira, livre e leve. Daquela risada que nasce da alma e extravasa num lance de emoção e alegria contagiantes. Falo de um choro que rasga o coração, que vem de um pulsar de sentimentos fortes, doridos, difíceis, amargos, de uma tristeza quase sem fim – ao menos no seu instante. Cada momento reclama seu mote, cada situação, sua expressão afim. Às vezes é difícil sorrir, porque as motivações são escassas. Às vezes não se consegue chorar e nem se sabe por que razões, as lágrimas simplesmente não vertem, resistem. E há os ataques de risos. E há os rios de choros.

     Até agora eu só disse o que todos já sabem. Nenhuma novidade anunciada, tudo não passa de simples constatação – sem graça nenhuma, dá até vontade de chorar... Mas o que me trouxe a estas linhas foi a “intensidade gratuita” de cada um desses movimentos interiores. Refiro-me àquele momento em que, sem mais, a gargalhada se faz incontida. Na gratuidade de um gesto, de uma fala, de uma cena a alma se torna plenamente invadida pela alegria e a risada ecoa no ambiente. Não há como segurar, tampouco, necessidade alguma de descrever algo, basta rir à revelia. Os entornos são contagiados, inclusive, e o lugar todo fica feliz, a vida flui mais leve por aqueles instantes. A graça da graça, de graça. Particularmente, riso de criança, que coisa divina. Que felicidade gratuita eles nos proporcionam.

     Na outra margem, a realidade do pranto. As lágrimas não ocorrem na mesma rapidez das boas risadas, são mais reservadas, por assim dizer. Mas tão necessárias e libertadoras quanto. Há momentos e situações nas quais somente o chorar alivia, desangustia, fala – quando não, grita. Também é uma graça divina, um dom curador conseguir derramar lágrimas que, a certa hora, transbordam da alma e escorrem dos olhos e do coração – com aquela mesma gratuidade do riso. O choro limpa, purifica, sereniza. Ele é a confissão da fragilidade humana, da dependência de algo que escapa das mãos, que foge do nosso alcance e que, por fim, está dentro: a capacidade de fazer-se choro, de desfazer-se em pranto. E que nenhum idiota insensível ao nosso lado diga: não chore. Por favor, deixe-nos chorar, o quanto preciso for, o quanto quisermos, enquanto conseguirmos.

     Seja sorrindo, seja chorando, o que está em jogo são emoções que ululam aqui dentro, desejosas de virem à luz, como num nascimento, e o único meio para tal é justamente deixar-se invadir por eles – prantos ou gargalhadas.  Trata-se de um falar sem dizer, de uma comunicação que vai para além do que se vê, principalmente no tocante às lágrimas. À toa até se ri, mas não se chora em vão. Ainda assim, a natureza é gratuita ao nos oferecer – e somente a nós humanos, coroa da Criação – caminhos tão intensos e tão divinos. Os soluços e as euforias traduzem a vida, respondem a necessidades, catalisam operações da alma. Lágrimas e sorrisos se fazem poesia no rosto, nos olhos.

     Tanto no sorrir quanto no chorar paira sobre eles um mistério encantador e, ouso arriscar, sedutor. Que força, que poder eles contêm. Há profundidade demais em experimentá-los tão gratuitamente, que minhas palavras não alcançam dizer. Provém de experiências tão distantes umas das outras, contraditórias em si mesmas e, contudo, realizam em nós algo semelhante: dão sentido à vida – quando bela, quando sofrida. O sorriso faz transparecer no rosto a bondade e o sabor do viver. A lágrima reflete no semblante os inevitáveis dramas e suas sentidas consequências. Não há como viver tão somente sorrindo, não há como viver sem algum dia não se derramar em lágrimas. Quanto ao que é mais fácil? Parece-me ser sorrir, não obstante, em não poucos momentos se faz necessário chorar.