Volta ao Mundo
Jota se encontra diariamente com a turma na Praça Sete, no calçadão do Bemge, por volta do meio-dia. Mocassim, calça e paletó esporte bem ajustados, cores combinadas, camisa social colorida e óculos de sol, indumentária para o calor do meio dia, seja inverno ou verão e a pasta James Bond para guardar tudo.
Jota, carioca, cheio de xis e chiados, torcedor do Flamengo, é o decano. Seus quarenta anos - sem barriga -como garantia, bom papo e experiência no ramo e, principalmente, de vida. A turma, a maioria nos seus vinte anos, se reúne no mesmo local antes de seguir para as consultas diárias aos cadastros das sedes bancárias no centro da cidade, farejando maus pagadores. A garimpagem os leva também ao comércio dos bairros. São os cadastristas da praça de Belo Horizonte.
Em volta, passa gente apressada, desce a Rio de Janeiro, cruza a Afonso Pena, desce e sobe a Carijós e Amazonas. O trânsito não para, os sinais abrem e fecham sem descanso, carros nervosos buzinam, ninguém se detém, a não ser quando interferem diretamente em seu cotidiano, exemplo um atropelamento ou o estrondo de uma batida. Na sequência, os comentários, as discussões acaloradas interrompendo o fluxo insano, gerando assunto para desocupados.
Subindo a Amazonas, já quase na Praça, Adevaldo, o grandalhão apaixonado, solta o agudo inicial de “A chi racconteró tutti i sogni miei”, avisando de sua chegada e seu eterno bom humor. Juca, a camisa social Volta ao Mundo já suada, sai da agência de seu banco na Caetés com Espírito Santo, sobe até a Tupinambás, vira à direita, depois à esquerda e logo vê, com alegria, a costumeira algazarra da turma, Jota no centro de tudo. Hoje, a turma pediu um samba, Jota puxa o “Mulata Assanhada” e dá uns passos marotos sob os aplausos dos colegas: cinco minutos de alforria no Universo.
Enquanto caminha, Juca vai pensando na vida e nos ônibus para chegar às fontes comerciais fora do centro da cidade. Tem, sim ou sim, de finalizar hoje a ficha do cliente vip do chefe, na Contorno com Barbacena. Volta e meia, pensa na menina de Itaúna, a das Lojas Brasileiras. Está de terno desde as sete da manhã, vem de ônibus da faculdade no Santo Antônio, às vezes de carona no fusquinha placa AB-2791, do Luizinho, colega da faculdade. Às segundas, quartas e sextas, só vai trocar de roupa à meia-noite, depois de dar aula de Literatura pro terceiro ano Científico de um colégio da Concórdia. A turma tem até aluno mais velho do que ele, já o convidaram pra uma cerveja numa sexta, depois das aulas. Está pensando nos prós e contras de uma saída dessas, afinal é o professor.
Nos dias em que dá aulas, lava a Volta ao Mundo, deixa secando no varal do banheiro para usar de manhã de novo. No próximo pagamento, vai comprar uma nova, uma azul-calcinha, está na moda. A Volta ao Mundo é o que há de mais moderno, tem todas as vantagens, apesar de esquentar um pouco: é de náilon, cheia de furinhos, não amarrota, não precisa passar, seca rápido, dura muito, pode usar todos os dias. A tia, preocupada, já pediu para ele comprar uma reserva:
- Aí você chega, deixa na cesta de roupa suja pra eu lavar no dia seguinte. Você vai ter sempre camisa limpa pra usar, não precisa mais dormir tão tarde.
A tia é uma segunda mãe, mas tem seus compromissos com o marido e os outros filhos, não pode conceder privilégios exagerados ao sobrinho interiorano, dá ciúme.
Chegando à Praça, procura logo o Jota, antes da debandada geral:
- Você tem alguma fonte no Barro Preto hoje? Dá pra fazer essa consulta?
- Só se você torcer pro Flamengo... Tem um tal de Zico no juvenil, espera só, vai arrebentar este ano. Dida vai virar o segundo ídolo do Mengão, escreve aí.
- Torço, mas faz essa consulta. Tentei por telefone, mas só dão informação pessoalmente, não vai dar tempo e tem que fechar a ficha hoje. Preciso ir no bairro Aparecida, numa serralheria. Qual ônibus pego pra ir lá?
- Vai ser o 89, se não me engano. Deixa ver no Guia.
Nonato aparece na porta do elevador. Já vem de volta com as fichas preenchidas, a pastinha debaixo do braço.
- Que calor! - o paletó já suado nas axilas. – Vou acabar comprando uma Volta ao Mundo também.
Juca se surpreende:
- Já acabou?
- Já. E você?
- Quase. Hoje, de banco, só tenho duas fichas no Banespa. Depois é comércio. Tenho de caminhar até o ponto na Paraná e tomar o ônibus lá pros lado do Aparecida, quase no viaduto São Francisco. E de terno!
- Pode calcular duas horas, ida e volta, no mínimo. O trânsito na Antônio Carlos tá cada vez pior.
Juca gosta de tomar água gelada nos bebedouros do Bemge. Conhece todos, do primeiro ao quarto andar, onde está o cadastro.
- Os do Banco da Lavoura são melhores, mais gelados e limpinhos - Jota garante, chiando com capricho em todos os “esses” do fim das palavras.
Nonato é colega e conterrâneo de Juca, caladão e bem informado, chama-o de lado e fala no ouvido:
- O chefe pediu pra não chegar cedo esta semana, pega mal. Continua falando que a Diretoria quer acabar com o cadastro. Conversa antiga, não vai pra frente, mas é melhor obedecer.
- Tô lembrado. Vou ver um filme no Tupis. Passo às 6 pra bater o ponto. O que vai fazer até na hora de voltar?
- Sabe o Tarcísio conterrâneo, o da Olivetti? Vou encontrar com ele no Parque Municipal. Depois tomo um café no Nice e volto pro banco lá pelas seis também.
- Dá um abraço nele. Se continuar assim, esse marasmo, convida ele, a gente vai ter tempo na próxima semana e se encontra, lê jornal no Parque ou pega um cineminha. Só espero não ficar sem emprego. Comprei um gravador de fita cassete e uma coleção dos Beatles à prestação lá na Mesbla, doze meses pra pagar.
Jota interrompe:
- Gente, o cadastro vai acabar. Tudo vai ser no computador, até cadastro. Não vê a loteca? Meu filho trabalha de madrugada perfurando cartões. E já botei ele num curso de Cobol. Alguém vai subir?
Ninguém responde, todo mundo olhando as cadernetinhas, verificando as anotações, conferindo a agenda. Jota dá tchau e pega o elevador sozinho.
Adevaldo comenta:
- Cobol, o que é? Mas nem fala isso, esquece. Jota tá é louco, carioca não sabe de nada, ele só lê Jornal dos Sports... Qual máquina vai fazer esse trabalho? Tô apaixonado, vou casar no fim do ano, não sei fazer outra coisa. Faço cadastro pra umas vinte firmas e ganho por produção. E o grandalhão reinicia o agudo inicial de “A chi”, o rosto infantil dos namorados, senha de chegada e despedida:
- Tchau, vou pro Mineiro do Oeste. Alguma coisa pra lá?
Juca, a caminho do ponto de ônibus, para em cada banca de revista, gosta muito de Placar, presta atenção nas capas de Noturno, Ilusão, Grande Hotel. Já trabalhou em banca, lia de tudo, até fotonovelas açucaradas. É viciado nas manchetes do Estado de Minas, Diário de Minas, Diário Católico, Diário da Tarde e até de jornais de concursos. Quem sabe, um dia acha um concurso bom, passa, arranja um emprego, ganha bem e dá uma volta ao mundo...
Quando o assunto do jornal é interessante, pega barranco em matéria de capa. De vez em quando, se esquece das horas e tem de acelerar pra conseguir fechar a agenda.
Já escolheu o próximo filme pra ver alguma tarde, se continuar o marasmo e persistirem as ordens do chefe: “Dio come ti amo”. Qualquer hora vai contar pro Adevaldo sua paixão por Luci, de Itaúna. Ele entende disso. De repente, fazem até uma serenata. Adevaldo, afinadíssimo, pode cantar ”A chi”, “Io che amo solo te”, “Cara” ou outra música italiana da moda. Luci trabalha de caixa nas Lojas Brasileiras, pertinho do seu banco. Conheceu-a num domingo à noite, na volta de ônibus de uma das viagens a Itaúna, onde tem parente. Ficou sabendo seu nome e o local de trabalho. Depois, acostumou-se a passar na loja todo dia, desculpa de comprar um chocolate, na verdade bater papo com ela. Morena dos dentes clarinhos, uma das sextas-feiras, ela disse ia passar o fim de semana de novo em Itaúna. Ele inventou na hora:
- Não brinca, coincidência, eu também. Vou ver meu tio de novo.
- Uai, a gente pode ir numa pizzaria perto do Ponto Chic, você conhece? Pertinho do Cine Rex. Vou com minhas primas. Viajo amanhã depois do trabalho, saio ao meio-dia.
- Combinado, apareço lá. Vou hoje à noite e volto no domingo. A casa do meu tio é pertinho da praça da igreja. Ali onde tem carnaval de rua.
- Sim, uma vez pulei carnaval lá. É legal. Acho fico uns dias por lá.
Pois realmente comeram na pizzaria, ela e duas primas, no sábado à noite. Só isso, as velas impediram uma aproximação, depois a despedida – nem aperto de mão - e a promessa de se encontrarem em Belo Horizonte no correr da semana.
Na quarta-feira, foi botar o visto no material, porém não encontrou Luci no caixa. Perguntou por ela, a substituta, sádica com certeza, quase o matou com a notícia à queima-roupa:
- Ela não vai trabalhar mais aqui. Mudou pra Goiás.
- ...
- Não, não deixou endereço.
Por isso, então, ia ficar uns dias em Itaúna... já tinha saído do trabalho, sabia que ia mudar... Imediatamente, sem achar graça nenhuma, lembrou-se da paródia “Oh Minas Gerais, quem te conhece prefere Goiás”. O coração gelou. Para Goiás? Então não volta nunca mais, rima inevitável.
Passou o dia angustiado e tomou uma decisão: não daria aula aquela noite, iria procurar por ela de casa em casa ou não conseguiria dormir. Tinha na memória apenas o nome da rua Henrique Gorceix, no Padre Eustáquio, nada de número. A rua tem alguns quilômetros, mas o amor não tem medidas. Começou no início, cruzou a Pedro Segundo, sobe, desce, sobe, desce, não acabava nunca. Um pensamento paralelo: devia fazer cadastro a pé pra economizar ônibus, é uma boa e dá preparo físico. Mas que sapato aguenta? Só um Vulcabrás ia resolver... Voltando à angustiante realidade, percorreu a Henrique Gorceix por infindáveis quarteirões mal iluminados, perguntou de casa em casa, recebeu nãos em todas, combinados com latidos e dentes ferozes em algumas, até encontrar a tia da amada e receber a resposta fatal:
- Sim, morava aqui, mas mudou pra Goiás...
- Ãhn....
- Não, não sei o endereço. Quando escrever ou mandar um postal... Aí a mulher fixou o olhar em Juca e cravou o veneno – se algum dia ela mandar - aí a gente vai saber. E mudando de tom: - Você é colega do serviço?
- Nada, era só freguês dela nas Lojas Brasileiras – responde engasgado, esmagado, um travo sufocante na garganta.
No outro dia, arrasado, tem de encarar a mesma sina: o universo vestido de terno preto, mesma gravata, mesma Volta ao Mundo, mesmas aulas na FAFI, o restaurante da Escola de Engenharia, bife, arroz, feijão, salada, uma fatia de goiabada para misturar no copo de leite, as mesmas aulas de Literatura no colégio da Concórdia para o terceiro colegial e a praça bancária de boca aberta para engoli-los, Jota à frente, sambando aliterações: Beg, Bemge, Banespa, Banrisul,
Bradesco, Mercantil, Banco do Brasil, Credireal, Irmãos Guimarães, Caixa Econômica, Banco da Lavoura, Comércio e Indústria, Econômico, Nacional, Mineiro do Oeste etc. etc...
Não se alegrou nem com a final da Copa do Mundo no domingo seguinte, Brasil tricampeão, Itália vice. Assistiu na casa da tia, na mesma sala onde tinha visto, no ano anterior, em família, a chegada à Lua. Saiu de Fusca com os primos, foram até a Praça Sete, tomou cerveja pela janela do carro no copo de um atleticano. Numa caminhonete, a carroceria cheia de moças e rapazes, com camisas da CBD, de Atlético, Cruzeiro, América e Villa Nova, alheios ao engarrafamento, ao foguetório, a cerveja rolava solta. O primo rodou por várias ruas e avenidas, até a hora da volta pra casa.
Segunda ia ser feriado, menos para Nonato e Juca: reunião de más notícias, o cadastro do banco ia se acabar, iam ser remanejados, Juca para o inferno da agência Tamoios, não bastava perder o amor, desgraça pouca era mesmo bobagem.
Na segunda-feira, apesar de campeão mundial, vestiu de novo seu terno preto e a camisa Volta ao Mundo. E Luci, ingrata e sem coração, radiante com o feriado e o tricampeonato, com certeza ria de sua infelicidade em algum lugar de Goiás.