100 de Bukowski e 51 de Woodstock: legados para nossos dias

Ontem fez 100 anos do nascimento do escritor estadunidense Charles Bukowski (foto acima) e, de 15 a 19 de agosto, comemora-se os 51 anos do mítico Festival de Woodstock, um marco da contracultura dos anos 1960, que tanto influenciou o mundo ocidental. Aprecio muito ambos os legados.

Bukowski nasceu na Alemanha em 16 de agosto de 1920, sendo que seus pais migraram para os Estados Unidos quando ele estava com 4 anos de idade. Teve uma vida errática, na boemia, movendo-se no mundo errante dos subempregos do baixo proletariado estadunidense; marcou muito a sua infância os anos posteriores à Crise de 1929, que afetou dramaticamente as familias de sua classe social. Obteve reconhecimento literário depois dos 40 anos e o sucesso comercial após os 50, ao abandonar seu emprego de carteiro e sobreviver apenas da literatura. Morreu aos 74 anos, vitimado por uma pneumonia enquanto lutava contra a leucemia.

Um dos escritores que mais gosto, tanto que um espaço na minha biblioteca intitulei Bibliokowski, onde possuo todos os seus títulos publicados no Brasil. Além disso, obras de alguns autores que o influenciaram, como Celine, Fante e seu contemporâneo Kerouac, embora Bukowski não seja um autor da Geração Beatnik. Eu cheguei, de verdade, nesses literatos via Bukowski, inclusive. Sua literatura em prosa e verso crua, com o cheiro, o prazer, os vícios e a dor das ruas, sem floreios ou moralismos, é visceral. É dos escritores que mais releio. Quando aconteceu Woodstock, Bukowski estava completando 49 anos e com certeza não deu importância para o evento, pois, paradoxalmente, embora seja apreciado pela contracultura e pelos hippies - inclusive ficou conhecido publicando em jornais destes -, era crítico daquele movimento, mesmo sendo um poeta, cronista, contista e romancista do underground, do mundo cão e avesso ao sonho americano - o que o unia à contracultura. Todavia, era de uma geração diferente, com valores diferentes, e, sobretudo, com drogas e comportamento sexual heterodoxo diferentes.

Os hippies cultuavam o amor-livre e a maconha e o LSD, para "viajar no cosmos sem precisar de gasolina", como cantou Nei Lisboa. Bukowski era alcoólatra e vivia no ambiente dos bares e do baixo meretrício. Os garotos da classe média baixa e o coroa do subproletriado, unidos pela desacomodação social e distantes nas utopias. Aliás, os hippies possuíam utopia; Bukowski, um sobrevivente, nenhuma - não foi por acaso que optei por uma foto P&B para Bukowski e colorida para o garoto de Woodstock -. Falando nele, os dois produtores-executivos e idealizadores do festival, Michael Lang (foto acima) e Artie Kornfeld, estavam, respetivamente, com 24 e 27 anos. Quase três gerações de distância (alguns teóricos afirmam qua a cada 8 anos se forma uma nova geração).

Sendo frontalmente contrários ao sistema capitalista vigente à sua época, era óbvio que os jovens ripongas encontrariam dificuldade de organizar o festival. Na cidade de Wallkill, onde inicialmente o mesmo foi marcado, sofreu forte oposição da comunidade conservadora local, impedindo sua realização há um mês da data programada, com preparativos já em andamento, fato que virou notícia nacional. O que fazer? Elliot Tiber, jovem dono de um hotel decadende na cidade próxima, Bethel, ao saber do problema, viu uma oportunidade para tirar sua comuna do marasmo econômico e ligou para Lang, dizendo possuir uma autorização para realizar o evento na cidade. Lang, quando chegou no local, sentiu a intuição de uma benção divina para a realização da sua "Exposição Aquariana de Artes" - o nome oficial do festival -, como afirmou em seu livro A Estrada Para Woodstock (Editora Belas-Letras, 2019): saíra de Wallkill, algo como "muralha assassina", para Bethel, a "Casa de Deus". O maior fazendeiro da cidade, o judeu Max Yasgur, de 49 anos - curiosamente a mesma idade de Bukowski -, aceitou alugar sua propriedade por 50 mil dólares, eis que simpatizava com a causa da liberdade de expressão e entendia ter sido errada a atitude dos moradores da cidade vizinha. Mais do que isso, defendeu, junto com Elliot, a realização do festival contra os conservadores de Bethel, aglutinando os favoráveis ao incremento econômico da cidade, então um ex-centro turístico estagnado na produção primária, especialmente a leiteira. Isso tudo vocês podem conferir no filme Aconteceu em Woodstock, do diretor Ang Lee (2009). O resto é a conhecida história do festival que tinha expectativa de vender ingressos para 200 mil hippies e que acabou sendo gratuíto, atraindo um público total de 500 mil a um milhão de pessoas, de acordo com as varias estimativas. Lang e Kornfeld desejavam realizar o maior festival hippie até então; acabaram fazendo o maior de todos os tempos, tanto de público como simbolicamente. Entraram para a história.

O legado de Bukowski é a escrita direta revelando o mundo dos excluídos sociais e econômicos em sua própria natureza e ideologia, por dentro, buscando a sobrevivência a cada dia, resistindo aos golpes da dura realidade de exclusão, isso tudo retratado sem floreio algum. O de Woodstock é que o amor, a paz e o ser humano são o centro da vida, não o dinheiro, o status social ou o preconceito que estigmatiza as pessoas por sua cor, credo, pensamento, situação finaneira ou orientação sexual, negando uma liberdade plena, com fraternidade. Vejo os hippies muito mais afeitos ao amor que vemos nos evangelhos, por exemplo, do que muito fundamentalista que atualmente abre a boca em vão pela grana sua de cada dia. Imagino que, se um herdeiro ideológico de Woodstock estivesse no poder hoje no Brasil, não estaríamos enfrentando a pandemia dessa forma horrenda e desumana. Morrer no Vietnan ou pela pandemia, ontem ou hoje, pela grana e pelo lucro do andar de cima, que diferença faz? Nenhuma! A história se repete, num eterno retorno... As escolhas que fazemos, contudo, podem ser diferentes, como as que os hippies ousaram, na Era de Aquário.



Crônica publicada no jornal Portal de Notícias.