Um Gesto de Amor
A gente acha que já viveu bastante e pensa que entendeu quase tudo o que aconteceu na nossa vida, eis que de-repente num daqueles clics, parece que te abre uma porta reveladora e você se pergunta: como é que levei mais de cinquenta anos para perceber uma coisa tão simples e óbvia?
Minha mãe ficou órfã de mãe aos três anos, quando então definitivamente foi morar com seus avós maternos. Meus bisavós. A família era grande. Com o tempo perderam a propriedade para os espertos negociantes estrangeiros que pra cá vieram se estabeleceram na cidade. Os dois já velhos, passaram a residir, de tempos em tempos nas casas dos filhos. Passavam temporadas lá em casa. Eram muito estimados por todos. Meu bisavô morreu, minha bisavó continuou no mesmo sistema.
Eu deveria estar com uns dez anos de idade, minha bisavó, que todos nós aprendemos chamar de vó, me chamou e me deu um canivete, que era a única coisa que ela tinha de lembrança do meu bisavô. Fiquei muito contente e carregava o canivete para todo lugar que ia. Fui nadar no ribeirão, o canivete caiu na água. Lamentei demais ter perdido uma lembrança do meu bisavô, pessoa muito amada.
Todas as vezes que me lembrei eu lamentei. Foram inúmeras em mais de cinco décadas, até que me veio à mente: Passei grande parte da vida lamentando uma perda e não percebi o que ganhei. Não percebi o gesto de amor de minha vó para comigo. Ela poderia ter escolhido para presentear outros netos, e ela tinha vários. Escolheu a mim. Foi um gesto de amor que eu levei uma vida para perceber e valorizar.