DIABÉTICO
Amava muito sua mãe. Queria o sorriso dela, o abraço que faz o mundo entrar nos eixos, a palavra doce. Amava também o pai, que, de sereno e brincalhão, mudava de feição logo que adentrava em casa. Havia olhares entre os dois capazes de matar o ser vivo que entrasse no fogo cruzado. E ele não entendia. Tinham uma casa para morar todos juntos, por que parecia que estavam tão longe um do outro? A mãe que sorria e espanava o nariz dele era a mesma mãe de lábios finos e apertados que se sentava à mesa sem dizer uma palavra? O silêncio era tão denso que pesava no coração.
Certo dia, na saída da missa, tomou a mão do pai e depois a da mãe. Tentou dizer que os amava com a alegria de um domingo ensolarado. Que queria ficar com eles para sempre. Que queria que todos fossem felizes. Ambos deixaram a mão pender frouxamente ao seu aperto, sem se encarar. Sem olhar para ele. Fazendo seu papel a contragosto. A mãe secou um olho disfarçadamente. O pai engoliu, fazendo o pomo-de-adão se mexer para cima e para baixo. Chegaram em casa imersos em pensamento, cada um em seu mundo. E nesses mundos, ele sequer existia.
Aprendeu rápido que seus gestos de pacificação cairiam no vazio. Havia alguma coisa que ele não entendia na dinâmica familiar. Algo que escapava a todos os seus esforços para tornar as coisas harmoniosas. Um oculto desejo de destruição, um conformismo que se revoltava. Que consumia aquele homem e aquela mulher que o haviam gerado. Uma fome pelos pedaços mais saborosos da vida. E ninguém para avisá-lo de que não tentasse resolver problemas que não eram dele. Para se amar mais do que amava a outrem.
O tempo passou. Houve mudanças. Os pais se separaram. A mãe ficou agitada e nervosa, começou a sair com as amigas. O pai formou outra família e foi rareando as visitas. A mãe também se apaixonou e ele a viu florescer e aprumar-se de tal forma que parecia outra pessoa. Veio outro casamento. Vieram irmãos, dois deles. Amou os bebês e dedicou-se a ser o irmão mais velho. O padrasto não o maltratava e tampouco o amava. Mas bastava. O único senão era a saudade, que vinha de noite dizer das coisas que não aconteceram, dos beijos não trocados entre os pais, da família que não vingou com a reunião de suas vidas. Queria ainda vivenciar a sensação de pertencer, de estar entre os seus. Queria ser amado com a fidelidade silenciosa com que amava.
Casou-se com uma moça que parecia precisar muito dele. E que breve se tornou uma esposa que exigia tudo dele. Com amor e paciência, pastoreava a cônjuge de volta ao bom senso. Fazia-se soldado, lacaio, confidente, amigo e cavalheiro andante. Fazia-se de tudo, menos de amante. Por vezes, duvidava que a esposa o amasse. Mas não tinha coragem nem vontade de abandonar a situação. Estava condicionado a lutar esperando por aquele dia apoteótico e final em que tudo se encaixaria, e todos viveriam felizes para sempre. E, claro, ainda amava a companheira. Assim foi vivendo a vida, sempre na esperança de uma abertura para concretizar a situação tão sonhada.
Já estava perto da aposentadoria quando começou a perder peso. Comia e bebia mais do que antes, mas perdia peso e urinava com frequência. O exame de glicose apontou uma taxa de glicemia acima de 200 mg/dl e o médico cravou o diagnóstico final: diabetes tipo 2. Havia insulina, mas o corpo resistia. O açúcar fluía pelas veias, como mel, esperando ser utilizado. Mas era como se o corpo não o quisesse. Não havia como transformar a doçura em alimento para as células. Pelo contrário, causava complicações. Nos olhos que não tinham visto muita alegria. Nos rins que já não tinham descanso. Nas feridas que já não cicatrizavam. Futuramente, nos nervos e nas artérias. O tempo não o ajudaria. Ele iria, figuradamente, matar-se com o próprio amor nunca expressado.
Tangará da Serra. 16/08/2020.