A Rabeca e Minhas Lembranças
Ela não era bonita, meio grosseira, branquela, mal acabada. Este foi o julgamento que fiz quando me foi apresentada. Depois que a ouvi, o que ela me disse ao ouvido despertou-me lembranças, guardei-a então em um canto especial da minha mente.
Talvez ela não caísse na graça de ninguém que não tivesse as mesmas conexões que eu tinha na memória.
Tenho convicção de que eu era uma dessas figurinhas carimbadas. O carimbo de “inimigo” da música era em alto relevo.
Inimigo de verdade nunca fica longe, sempre dá um jeito de se mostrar. Aquela rabeca, penso que foi obra desse tal “inimigo”, certamente para não me deixar esquecer de sua existência.
Sem saber a razão, fui um “moleque” do contra; enquanto as outras crianças, pacificamente, passivamente, seguiam os costumes, eu era resistente em cumprimentar as pessoas, em pedir a bênção beijando a mão, eu não era muito amigo da obediência.
Diziam todos, que uma então famosa dupla sertaneja era a mais afinada que existia, eu que nada entendia de afinação achava a voz dessa tal dupla, horrível, detestável. Por essas e outras é que se justificam as implicâncias que tinham comigo.
Folia de Reis é uma tradição na nossa família desde muito tempo antes deu tomar conhecimento da minha existência. Até aos sete anos tive muito contato com essa folia; depois, morando na cidade, naquele tempo ela era mais presente na roça, o meu contato se tornou esporádico. Entretanto, muitas folias de outros mestres, sempre passavam e cantavam na redondeza onde eu morava e eu me metia no meio delas. Não cantava mas gostava de ouvir. Eu sabia perceber as diferenças entre as folias, nos ritmos, nos versos, no modo de cantar, no visual. Muitas vezes estive no meio da folia do Mestre João Limoeiro.
O sujeito todo vaidoso, com a rabeca nas mãos, perguntou-me se eu queria comprá-la. Disse-me que era uma obra sua, que a tinha esculpido recentemente ali onde viera residir. Perguntei se ela funcionava, ele então executou magistralmente naquela rabeca rústica, a valsa Saudade do Matão. Perguntei o seu nome e ele me respondeu, João Limoeiro. João Limoeiro, o mestre de folia, lembrei-me e fiquei um pouco emocionado.
O valor que ele pediu pela rabeca era bem baixo, mas eu não tinha o dinheiro. Foi a última vez que estive naquele asilo.
Quanto ao meu"inimigo", eu não sei quem persegue quem, mas de um modo ou de outro, desconfio que morrerei abraçado a ele.