Família

Família é uma coisa engraçada. É verdade universal e absoluta que família, depois da saúde, é a coisa mais importante de se cultivar e manter. Que ali estão as pessoas que verdadeiramente nos amam e que nos ajudarão numa necessidade e emergência. As amizades são boas e necessárias, mas nada se compara à família. Ali há chatos e insuportáveis, mas são eles, e não os amigos, que se preocupam conosco e vão nos amparar a um estalar de dedos. Eu até acredito nisso, sim, e fico me perguntando por que é assim. Afinal, muitas vezes, a família fica ao longe, distante geográfica e emocionalmente, e nas nossas horas boas poucos são os familiares que compartilham nossas alegrias. Nessas horas os amigos são mais numerosos e presentes. E quando a tempestade se aproxima, recuperamos os laços familiares e eles são os que se aproximam. Seria por obrigação familiar? Instinto animal de preservação da espécie (no caso, da família, do nome)? Amor verdadeiro? Empatia genética? Investimento visando retribuição? Perguntados, certamente responderão: a razão é ser família e ponto.

Nossas educação e religião pregam respeitar pai e mãe (e não se menciona tios, primos, irmãos), os mais velhos (refere-se a todos os idosos), amai seu próximo como a um irmão (já pressupõe que nascemos com um amor fraternal), mas não há um mandamento referente à família propriamente dita. Então o que nos faz tão ligados a ela? É sabido que o amor entre irmãos não é tão unânime quanto se prega, especialmente se há muitos envolvidos. Há preferências, ciúmes, disputa, ou simplesmente incompatibilidades. Mas na hora de necessidade...irmão é irmão, é família, e todos devem socorrê-lo, sem qualquer distinção.

Minha visão de família tem o viés de quem saiu de casa e da cidade natal aos 17 e voltou apenas para visitas rápidas. O que no início é saudade e fortalece a ideia de família, com o tempo vai sendo substituído por outros valores, supervalorizados durante um certo e longo tempo. Tempo suficiente para romper de forma indelével alguns laços. Nada pensado, nada planejado, simplesmente acontece e pronto. Amizades substituem a família tão rapidamente quanto é o tempo necessário para se descobrir quão efêmeras elas podem ser.

Distâncias geográficas não justificam mais o distanciamento familiar. Hoje em dia é possível estar perto mesmo estando longe. A distância entre as almas depende de mais coisas do que de alguns quilômetros vencidos. Depende de atenção, acarinhamento, empatia. Mas família é família e mesmo as diferenças de natureza cultural e intelectual não impedem que vejamos nossos rostos nos rostos daquelas pessoas, nossa história na sua história. Talvez seja isso que nos faz sentir parte dela mesmo sendo tão diferente, ou achando-se diferente apenas. E estranhando aquele sentimento que as une e que nos une a elas igualmente.

Quando me encontro com sobrinhos que vi nascer, de quem cuidei, com quem brinquei inúmeras vezes, e que hoje me olham com menos intimidade do que olham seu novo amigo, seu vizinho ou colega de trabalho, me pergunto onde e quando se perdeu aquele laço. E não se trata apenas da falta de lembrança da parte deles, mas também do vazio produzido em mim, que conservo as lembranças. Nada diferente do que ocorre em qualquer família, mas seria mais gostoso se os sentimentos se mantivessem. Novas gerações me olham e meu olhar implora algum tipo de respeito e valor, ainda que seja pelo fato de ser família. Qual o quê, nada existe entre nós, além de um ramo qualquer na árvore genealógica familiar. E assim como ouvi e ouço, lhe falo em pensamento: você não perde por esperar; quando precisar realmente de algo importante, é a família que vai te socorrer, quem sabe, eu mesma. Essa ameaça nada mais é do que a necessidade inconsciente de preservar o valor da família, menos para protegê-los e mais para incluir-me.

A família é tudo, e ao mesmo tempo é o principal complemento de tudo o que chamamos de nossa vida. Quando tudo está bem, é nos amigos em quem pensamos. Quando algo vai mal, difícil não recorrer à família em primeiro lugar. E quando a família está distante, o pedido de socorro a faz lembrar de que o membro desgarrado, apesar de distante, nunca deixou de ser família e não faz nada além do que é esperado quando recorre a ela.

Ao contrário do que se costuma dizer, amigos verdadeiros não são como família. Precisariam provar que o são para sempre.

(14 Janeiro 2015)

Anelê Volpe
Enviado por Anelê Volpe em 01/08/2020
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