*O padre e a podóloga

O padre e a podóloga

Padre Antônio Melo da Costa, ou simplesmente, Padre Melo, como era conhecido em Sergipe, era um sacerdote católico das antigas. Uma única vez eu o vi de terno e clérgima, durante um debate na televisão e fiquei deveras admirado. Certamente a batina estava rasgada, segundo outros padres, pois Padre Melo não tirava a batina nem pra dormir.

Fora ordenado sacerdote aos 27 anos, no Rio de Janeiro. Dinâmico em todos os sentidos, a mim me parecia um típico padre do interior. Que ninguém veja nisso um demérito, muito pelo contrário, era mais uma virtude.

Juntamente com Padre Marco Eugênio (hoje, Bispo Auxiliar de Salvador) e Padre Arnóbio, eles formavam a tríade dos melhores conferencistas da Arquidiocese de Aracaju. Era um intelectual de raciocínio rápido e chegou a publicar, em inglês, nos U.S.A., o livro “The Coming Revolution in Brazil”, que causou não poucos rebusteios.

Em Sergipe, seu trabalho pastoral foi de inigualável expressão, sempre se posicionando ao lado dos menos afortunados. De fundador de sindicatos trabalhistas à Pastoral Carcerária e às Missões no interior, ele fez um pouco de tudo. Tinha uma dedicação especial ao Encontro de Casais com Cristo, porque gostava e prezava muito a família.

Por tudo isso, em 1991, ele desembarcou em Sergipe, vindo do Pará como professor aposentado da Escola Agrotécnica Federal, e logo se fez conhecer por todos aqui.

Antes disso, atuou com bravura no interior de Pernambuco. Concorreu ao Governo do Estado em 1982, pelo PTB, ganhou todos os debates e ainda deu uma sova de rachar espinhaço no governador eleito, Roberto Magalhães.

Segundo depoimento do Professor Josué de Castro, Padre Melo foi quem elaborou o melhor plano de Reforma Agrária de que se teve conhecimento. Na década de 60, seu nome foi incluído no conceituado Almanaque Mundial, como um dos três homens mais influentes da imprensa internacional.

Entendia como poucos sobre a Doutrina Social da Igreja e detinha uma rede de informações privilegiada. Quando uma coisa acontecia na Santa Sé, no

dia seguinte, ele já ficava sabendo em Aracaju.

Em Pernambuco, esteve sempre ao lado dos trabalhadores de engenhos

de cana de açúcar. Na época dos Governos Militares, isso lhe rendeu algumas encrencas, porque também gostava de provocações. Numa dessas, ele foi convocado a comparecer ao QG do Exército em Recife, para se justificar sobre um artigo publicado e assinado por ele num dos jornais da cidade. Mas saiu de lá exatamente como entrou.

Acontece que Padre Melo reuniu uma centena de frases de declarações de políticos da Arena, partido do governo, e reuniu-as num só tomo, dando-lhes um sentido completo. Mostrou quem as tinha proferido, quando e onde. Só que acabou ficando um discurso ofensivo, uma peça literária que resultou num depoimento sem o menor fundamento. Mesmo assim, ele saiu tirando onda!

Padre Arnóbio escreveu uma crônica que deu o que falar, com o título de

“Carregue sua cruz com elegância”. Essa crônica foi escrita sob medida, tanto para o escritor, como para o Padre Melo. Tanto que, quando este contraiu um câncer e ficou visivelmente combalido, ele continuou solícito, carregando sua cruz com elegância, sem se queixar de nada, apesar de todo o sofrimento pelo qual estava passando.

Entre as esquisitices do Padre Melo, três eram interessantes: ele não gostava de ser considerado de classe média, odiava promoções no comércio, por achar que tudo era embuste, e detestava cartão de crédito.

Houve um período em que todos os dias chegavam cartões de créditos em nossas casas, quer tivéssemos ou não conta naquele banco. A coisa ficou tão grave, que o MP entrou na Justiça e proibiu a remessa sem o aval do cliente. Talvez por isso ele detestasse cartão. Também não usava cheque, pagava tudo em espécie.

Com esse cartel invejável de vitórias por nocaute, mal sabia ele que haveria de enfrentar uma adversária manhosa, que o deixaria imóvel e acuado em seu corner, batido e abatido.

Deixa comigo que eu conto essa treta...

Padre Melo caminhava com dificuldades. Como diz o velho bordão: o gigante se prende pelo pé. Unhas encravadas aos montes em cada pé, até que, não mais resistindo, procurou uma clínica de podologia. Foi aí o ringue da refrega!

Ora, além de ser um padre bastante conhecido, ele costumava usar batina diuturnamente. Por isso, a pergunta da podóloga lhe pareceu uma provocação.

– O senhor é padre, não é?

– Sou sim, senhora!

Nesse momento, o alicate lhe alcançou uma parte mais sensível e o padre reagiu de imediato, acusando o golpe.

– Oxente! O senhor não é homem não? Que padre mole é esse? Mulher arranca pelos com cera quente, leva topadas, tem dois filhos de uma vez, tira seios, tira útero e não solta um ai. Mas na hora que entra um homem aqui já começa o chororô, parece até que o mundo vai se acabar! Onde já se viu?

Todos os presentes deram gargalhadas, mas o padre engoliu em seco, envergonhado. Dali em diante, resolveu que ela poderia lhe arrancar até o dedo, que ele não iria reagir.

O trabalho continuou em silêncio, até que a moça resolveu quebrar o gelo.

– O senhor, como padre, deve conhecer a Bíblia de trás pra frente, não é mesmo?

Mas o que Padre Melo tinha de inteligente, tinha igualmente de simples. Nunca o vi com pabulagens, contando vantagens. Era senhor de seus temperamentos.

– Sou bacharel em Teologia, mas posso não conhecer o suficiente para atender às suas expectativas.

A moça estava preparando uma esparrela para pegar o padre na virada e, ao que pareceu, ele não se deu conta disso.

– Ouvi dizer que na Bíblia tem uma parte que diz que o corpo da gente é o templo do Espírito Santo...– continuou a moça.

– É verdade. Salvo engano, isso consta da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, 6,19.

– E que fomos comprados por um preço absurdo...?

– É verdade. Parabéns! Você está bem catequizada. Essa parte que você

falou é o prosseguimento da 1ª Carta aos Coríntios, 6,20.

– Pois é exatamente isso o que não entendo...

– O que a senhora não entende?

– Como pode um homem tão inteligente como o senhor, que é fluente em

línguas clássicas, escreve em inglês, é filósofo, conhece a Bíblia como poucos e deixa o Templo do Espírito Santo nesse estado de miséria? Seus pés, nesse caso, são as fundações do Templo e seu Templo está se ruindo, pois, pelo visto, o zelador não está nem aí!...

E a moça continuou:

– Um prédio com os alicerces danificados vai ao chão. Agora o senhor está aqui, sofrendo feito um condenado e, com certeza, veio na marra, porque não devia estar mais aguentando andar. Estou com dó do senhor, mas infelizmente, não posso fazer nada. Mas acho bem feito, para o senhor aprender a cuidar melhor do Templo do Espírito Santo.

Padre Melo estava fumaçando, mas aguentou firme o tranco. Terminado o trabalho, ele perguntou quanto custava o serviço e a resposta da moça foi como um tiro de misericórdia:

– Custa $$$$$. Estou fazendo uma promoção. O senhor quer que parcele

no seu cartão de crédito?

O padre nos contou isso durante uma reunião na Rádio Cultura e nós nos

matamos de rir, imaginando a impotência dele por não poder responder nada.

Padre Melo nos deixou em 19/08/2002. Foi uma das mentes mais iluminadas do seu tempo e plantou muitas saudades.

Até mesmo no coração da podóloga.