100 anos de Florestan Fernandes

Dia 22, quarta-feira passada, fez 100 anos do nascimento de Florestan Fernandes, talvez o mais importante sociólogo brasileiro, pesquisador e professor da Universidade de São Paulo - USP, cidade onde nasceu e faleceu, em agosto de 1995. Dada sua importância, a Sociedade Brasileira de Sociologia - SBS realiza desde o dia 8, até o dia 29, um ciclo de seminários sobre ele.

Oriundo de família pobre, trabalhou desde criança para ajudar no sustento da família e, mais adiante, para manter seus estudos, relato que faz no texto "Ciências Sociais: na ótica do intelectual militante", fácil de encontrar numa googleada. Essa sua "situação de classe" marcaria sua vida intelectual e cidadã. Deu aulas também na Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP e a biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP leva o seu nome. Em 1969 foi aposentado compulsoriamente pela Ditadura Militar, tendo sido professor visitante nas universidades estrangeiras de Columbia, Yale e Toronto, retornando à PUC em 1978. Além da carreira científica e acadêmica, foi deputado federal constituinte, exercendo esse cargo eletivo por duas legislaturas consecutivas.

Desse período, há uma história interessante a indicar o tipo de pessoa pública que Florestan era, conforme nos relata Laurez Cerqueira: "Certo dia, ele passou mal em casa, devido a complicações da hepatite C, (que mais tarde o levou à morte), chamou um táxi e foi para o Hospital do Servidor. Quando seu filho Florestan Fernandes Júnior chegou ao hospital, ele estava muito abatido, mas numa fila. Perguntou por que ele estava naquele hospital, se ele era deputado, podia ir para o Sírio Libanês, Albert Einstein, ou outro bom hospital, e por que ele estava na fila? Ele disse que foi para aquele hospital porque ele era servidor público e que aquele hospital era o que devia cuidar dele. E que ele estava na fila porque havia fila, cada uma daquelas pessoas estava com necessidade de atendimento como ele". Eis o homem, como diria o também saudoso cronista Paulo Sant'Ana.

Assim, pelo visto acima, qualquer pessoa que, de alguma forma, faça estudos na área de Sociologia aqui no Brasil, ouvirá falar dele, obrigatoriamente. Obviamente estudamos seus textos no curso de Ciências Sociais lá na Unisinos, em São Leopoldo, na década de 1990. Recordo de um causo particularmente engraçado daqueles tempos. Numa disciplina chamada História Política e Social do Brasil, nos semestres iniciais do curso, tivemos aula com um professor bem extravagante, o José Luiz, o qual chamávamos, sem ele saber, de "Blendorréia". Ele falava de uma forma totalmente histriônica, levantando a voz, fazendo gestos vigorosos e se movimentando rapidamente pela sala. Chocante, de início, depois nos acostumamos. O apelido veio por, na primeira aula, ter comentado sobre essa doença, que, segundo ele, ainda existia em algumas partes do país. O que causou impressão em nós foi a forma como pronunciava: "blendoRRRRÉÉÉÉÍIIIIAAAA", assim mesmo, levantando a voz ao final e esticando as letras.

Lá pelas tantas inventou de fazer trabalhos em grupo, dividindo-nos a fim de apresentarmos vários textos sobre História do Brasil. Nós que formamos os grupos, e eu fui para o que ele chamava, com indisfarçável desdém, de "o grupelho da esquerda" - questionávamos muito em suas aulas. Da bibliografia que ele ofertou para escolha, pegamos "A Revolução Burguesa no Brasil", obra clássica de Florestan Fernandes, publicada em 1975. Na verdade ficamos com o livro só porque cobramos que ele indicasse autores críticos e um de nós citou Florestan, aí o professor aproveitou a deixa e incluiu esse para nos detonar, claro. Sim, a bronca é que se tratava de um texto além de nossa ainda incipiente formação. Imagina, eu tinha me arrepiado no início do curso ao ler um texto sobre anomia social do Durkheim! Tivemos de dar um jeito de descascar o abacaxi que nós mesmos havíamos plantado e não fazer feio, pois o "Blendorréia" não dava mole, questionava e criticava muito nas apresentações. Uma colega, que não ia com a nossa cara por razões ideológicas, zombou: "Não conhecem nem a história do Brasil e querem ser marxistas. Vão se ferrar com o professor na apresentação".

No nosso dia, um grupo apresentava o seu texto antes da gente, sobre militarismo no Brasil. Uma outra colega lá, fazendo o seu melhor, e o Blendorréia intervindo na fala dela, intimidador - ele realmente sabia muito, era um cara culto. A colega foi ficando insegura e se instabilizando emocionalmente, todos percebemos, mas o professor nem aí, vá questionar e criticar. Dali uns minutos a guria desaba, começa a chorar compulsivamente e se retira da aula, descontrolada. Todos ficam quietos, estupefatos, sem reação, e o José Luis, surpreso, diz: "O que houve com ela? Será que ela se magoou com minhas observações? Eu estava apreciando muito sua apresentação, só queria ajudar". Sorte nossa, pois éramos os seguintes e o enfrentamos com o freio de mão totalmente puxado, constrangido que ficou com a situação. Assim, podemos discorrer tranquilos sobre o que entendemos da análise de Florestan sobre a formação do capitalismo e da burguesia no Brasil. Ufa, escapamos por pouco, pois sabíamos que ele estava "ávido" pela nossa vez. E a tal colega direitosa não teve seu desejado gozo, eh eh eh eh.

Então tá, era isso. Pretendi fazer uma crônica leve para marcar o centenário desse grande intelectual brasileiro, professor do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, esse igualmente grande cientista social que já foi, inclusive, chamado de "O Príncipe dos Sociólogos". Embora com certeza recusasse tais titulos nobiliárquicos informais, Florestan, onde FHC fosse "príncipe", seria "rei". Até o Blendorréia concordaria.

PS - Ah, ia esquecendo, ainda bem que o colega de Recanto Sô Lalá lembrou. Por falar em FHC, vamos mencionar outro episódio marcante, ao final de sua vida, também lembrado por Laurez Cerqueira: "Quando a saúde dele se agravou a ponto de restar como única alternativa o transplante de fígado, Fernando Henrique, seu ex-aluno e assistente, presidente da República, ligou e ofereceu-lhe a possibilidade de fazer o transplante numa clínica em Cleveland, nos Estados Unidos. Ele agradeceu a gentileza e disse que não poderia aceitar aquele privilégio. Aceitaria se todas as pessoas que estavam em situação de saúde mais grave que a dele tivessem a mesma oportunidade. Ele fez o transplante em São Paulo e morreu em decorrência de erro durante a recuperação da cirurgia".


Crônica publicada no site do jornal Portal de Notíciashttps://www.portaldenoticias.com.br/colunista/53/cronicas-artigos-joao-adolfo-guerreiro/