Ser Muitas

Quando eu morrer, provavelmente dirão Foi uma mulher assim ou Foi uma mulher assado, ou Foi uma grande mulher, etc. É assim com todo mundo que morre, mulher ou homem, afinal. Sempre encontram adjetivos para nos descrever. Isso pode acontecer enquanto se está vivo também. Aliás, é quando mais acontece. Nesse caso, os adjetivos são escolhidos com menos cuidado e mais sinceridade. Seja como for, os comentários vêm em tom definitivo. Ela era assim, ela é assim e ponto. A verdade é que as definições nada mais refletem do que a imagem vista pelo opinante. O que é aquela mulher, de fato, poucos sabem. Eu desconfio que o primeiro erro está no fato de se achar que a mulher adulta é o resultado de uma somatória de fatores ao longo do tempo. Na minha opinião, não existe uma mulher, existem várias numa única.

Eu, por exemplo, tenho sido várias mulheres. Algumas, por tempo determinado, outras, por boa parte da minha vida. Não saberia definir a mim mesma. E nem quero, pois isso tiraria toda a graça da complexidade do meu ser. Tenho sido uma menininha indefesa e graciosa, uma criança levada, uma mulher maliciosa, outra, malvada, uma mocinha sensível, outra, desiludida, um ser humano amargo, outro, apaixonado, e por aí vai. Essas facetas se repetem indefinidamente, de modo que qualquer definição me cabe e é imprecisa.

Que mulher nunca foi uma donzela sonhadora, que tudo largaria para se casar com um príncipe encantado? Que mulher nunca se apaixonou por quem nunca reparou na sua existência? Que mulher nunca defendeu seu filho ante a menor ameaça? Que mulher nunca invejou uma amiga? E que adjetivo definitivo merecem essas mulheres? O que mais lhe cabe é o de ser humano. Como tal, somos sujeitos a qualquer tipo de comportamento, reprováveis ou não, sublimes ou não.

Sou muitas mulheres, não uma soma delas, pois não sou resultado, sou um aglomerado de seres que me indefinem. Faço coisas que não quero, quero coisas que não faço, finjo o que não sou e sou o que não posso fingir. Tudo isso e nada disso sou eu. Romântica, sarcástica, espirituosa, amiga, racional, traiçoeira, sincera e prestativa. Preguiçosa e vaidosa, elétrica e cínica. Frígida, espontânea e fria. Passional e verdadeira. Transparente e ciumenta, honesta e invejosa. Feliz, fútil e mal-humorada, depressiva e dissimulada. Amorosa, intelectual e indecisa. Dedicada e indelicada. Faladeira, pessimista, objetiva e magoada. Sou o que sou e não o que quero ser. Não consigo ser o que quero ser, tenho que aceitar o que sou.

Ser muitas tem a vantagem de não ser cobrada de coerência, de não causar grandes surpresas. Mas quem se importa com isso, afinal? Se meu comportamento te espanta, isso pode ser – embora não deveria – problema teu, não meu. Multiplicidade não deve ser confundida com incoerência. E, a bem da verdade, coerência é uma coisa muito chata! Tudo o que é muito previsível é desinteressante. O imprevisto traz emoção, assim como a espontaneidade traz dor.

Cada um sabe a dor e a alegria de ser o que é. Quando jovem, eu tinha uma camiseta com esses dizeres. Achava que era muito profundo no que dizia respeito a minha pessoa. Mas hoje acho que me cabe bem. É difícil decidir o que ser e o que não ser, ainda mais depois de 50 anos testando todas as possibilidades. Mas não é. Há algo mais forte que nos impele a ser assim e não assado. Ninguém consegue fingir o tempo todo. E ser muitas tem um preço alto. Ser muitas pode ser sinal de insegurança, de não saber qual escolher, de não conseguir ser uma só. Ser muitas atrai mais censura do que admiração, mais distância do que aconchego. O lado bom da história é que a multiplicidade traz a liberdade. Ser livre para sentir o que tiver de ser sentido, para ter o prazer de ser efêmero o momento de ser aquilo que se é. E, para isso, é preciso suportar as consequências de ser muitas para ter o direito de não ser única.

(12 Fevereiro 2015)

Anelê Volpe
Enviado por Anelê Volpe em 23/07/2020
Reeditado em 24/08/2020
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