NÃO SEI CONTAR CONTO (uma homenagem a Raimundo Carrero)

* NÃO SEI CONTAR CONTO

Raimundo pediu que escrevesse um conto. Então ponderei:

– Eu escrever um conto? Não posso, já disse que conto eu não conto. Não sei contar conto. Aliás, não sei escrever conto. Contar eu sei. Ou não sei?

É, talvez não. Mas sei contar histórias. Pode ser que das histórias surja algum conto. Então tá, eu conto. Não, não vou contar não. Minha avó sempre disse que quem conta um conto aumenta um ponto. Vão me chamar de mentirosa. Mas conto não é mentira, é invenção. Pode ser mentira também. Pode até ser verdade. Quem sabe?

Tem escritor famoso que para começar um conto sai cortando jornal. Nunca se deu mal. Tá, espera aí, vou buscar um jornal. Está aqui, não é de hoje, mas serve.

Bem, já li, reli e nada. Não acho que nada aqui dê um conto. Tá vendo Raimundo? Num sei criar conto. Só você mesmo. Bem, estou indo. Desisto.

Espera um pouco. Tem aqui: “Linha Direta comemora sete anos no ar com um programa especial”. (Desculpe as aspas, Raimundo, sei que parecem urubus). Pode ser por aqui? É, talvez.

Vamos lá. Vai que algum assassino desses cisma com essa notícia. O que ele faria? Bem, acho que ele cometeria sete assassinatos, só para comemorar o fato de não ter sido pego ainda. Ou sete estupros? Sei lá, sete é conta de mentiroso mesmo, qualquer coisa serve. Espera, vou ler um pouquinho sobre isso.

Bem, aqui diz que o Linha Direta colhe os louros das prisões de alguns procurados pela justiça que estavam no Brasil e em outros países como Itália, Portugal, Espanha, Paraguai, Bolívia e Venezuela. Engraçado, tem sete nomes de países, um para cada ano do programa. Eureca! E daí? Daí que algum assassino pode até brincar de viajar de um país a outro mudando sua identidade e cometendo crimes diversos. Posso contar a história desse cara. Não posso? Tá, inventar claro, ele só existe na minha cabeça. Presta atenção! Vê que legal: aqui diz também que às vésperas da Copa do Mundo, a data será comemorada com a exibição de um Linha Direta Justiça sobre o roubo da Taça Jules Rimet. Outra vez pergunto: e daí? E daí que posso falar do cara que roubou a taça. Ninguém o conhece mesmo. Ou conhece? Não sei como ficou isso. Sei que a taça apareceu derretida, não foi? Mas não lembro se os pegaram. Bem, volta para o assassinato, ou melhor, os assassinatos.

Vou tomar um copo d’água.

Voltei, acho que chiei, não vou escrever esse conto não.

Está bem, não gosto de desistir. Lá vai, vou falar de assassinato, esquece essa Linha Direta.

É o seguinte: o conto se passa numa escola de dança, cujo professor é um homem alto, moreno, cabelos cheios e olhos negros e penetrantes (Raimundo disse: não diga que ele é lindo, mostre. Leitor não é burro). Bem, acabei de vê-lo num filme no TNT quando fui fazer um sanduíche. Não sei nem que filme é, mas já tenho um lugar e um personagem na minha mente. Depois eu conto o resto. Será que eu conto mesmo?

II PARTE

Não disse que contava o resto? Na moral, essa é a “segunda parte” só não sei de quê. Mas, vamos lá. Eu disse que já achei meu personagem principal: um professor de dança. Vou agora falar sobre ele e sua escola. Quem sabe não é o início do meu conto?

O salão de dança estava sempre lotado. Moças, mulheres de meia-idade, jovens, casais, homens separados, solteiros, tipos às vezes indefinidos. O que eram não tinha importância muito menos quem eram. Durante as aulas eram iguais e com um único objetivo: aprender a dançar! (ops, tira a exclamação, Raimundo diz que as palavras não precisam de muletas). Corrigindo: aprender a dançar. Continuando:

Porém, mesmo algumas pessoas, que tendo a comprovada inabilidade para tal, continuavam ali, assiduamente.

Na pista, ao iniciar a aula, um corpo esguio domina o salão. Cabelos negros e fartos, corpo bem definido, musculoso, porém sem exageros, e sério, muito sério. Lábios carnudos, cílios grandes, nariz bem desenhado sem ser muito delicado. Talvez a única razão da freqüência das moçoilas persistentes. Rodopia com uma das mais antigas alunas. Pela sintonia do casal supõe-se que dançam juntos há décadas. Ela, um pouco mais baixa, morena, cabelos presos num coque puxado para cima, o que dava um leve puxar nos olhos. Pernas bem feitas e torneadas, cintura fina, quadris grandes e bem feitos. Busto pequeno e ombros largos definiam seu corpo não tão magro, mas a flutuar nos braços do condutor.

Nos olhos voltados para o casal, um misto de admiração e curiosidade sobre uma suposta relação.

Aos poucos se formavam os casais que tentavam agora imitar os passos que eram ensinados. Verdadeira catástrofe para alguns. Mas o professor, muito pacientemente, conduzia-os, um a um em seus braços, na vã esperança de ensinar-lhes suas naturais habilidades (tá certo, Raimundo, tenho mania de vírgulas, vou tentar diminuir).

A aula terminava sempre como um grande baile e todos se soltavam e rodopiavam pelo salão conduzindo seus pares. Aplausos concluíam a aula deixando-os ansiosos para a próxima.

A turma seguia em frente e surpreendentemente melhoravam a cada aula. Até os menos hábeis haviam evoluído muito. Uma aluna novata dançava agora tão bem quanto a antiga que sempre abria as aulas.

Ele, sempre muito sério, queria que se esforçassem mais e procurassem a perfeição dentro das possibilidades individuais, na contagem dos passos, no ritmo, no balanço do corpo, inclinação da cabeça, enfim, exigia muito de todos.

Com o passar do tempo (juro que fiquei tentada a colocar com o passar dos anos, mas sempre lembro da frase dele: passar dos anos só me lembra Tobogã), alguns alunos dominavam vários ritmos e havia uma aluna que praticamente dominava todos.

Era leve, graciosa e parecia não fazer o menor esforço para dançar. Ele agora revezava a abertura da aula com outras alunas e demorava-se mais com ela.

Estava muito evidente o interesse por ele. Ela olhava-o com uma admiração profunda. Ele sabia disso, mas nunca demonstrou nenhum interesse.

Com o tempo os dois passaram a serem vistos saindo juntos. Conversavam sempre muito próximos e baixinho. Parecia o início de um romance. Algumas alunas ficaram visivelmente enciumadas. Cada dia dançavam mais sincronizados. Formavam um par perfeito.

A turma estava tão animada que marcaram um concurso de dança no final do ano. Ensaiaram muito para o dia da apresentação.

Porém no dia marcado o professor não apareceu. Ela também sumira. A aluna mais antiga, que abria as aulas inicialmente, também não compareceu. Na última aula havia faltado e ele comentou que estaria adoentada. Ficou por isso.

Estavam decepcionados. Por certo haveria uma explicação. Não houve. Simplesmente faltaram, os três. A apresentação foi cancelada.

No dia seguinte, para espanto e tristeza de todos, a resposta estava estampada no jornal: “Casal de dançarinos é assassinado num posto de gasolina por suposta amante".

Aí, contei!

Podem achar ruim, eu disse que não sabia contar mesmo (rs rs rs).

Oficina Literária Raimundo Carrero (abril 2006).

Essa foi uma brincadeira, um treinamento na verdade, que fiz quando entrei pela primeira vez na Oficina Literária de Raimundo Carrero, em 2006 e ele pediu para escrever um conto. Minha turma era muito entrosada, dedicada e inteligente, entre eles estavam Paulo Caldas, Nivaldo Tenório e Fernando Farias, com os quais, nas apresentações de textos, aprendi um bocado, inclusive que ainda tinha muito chão pela frente. Em 2008, lancei dois livros infantis: Malu em apuros (uma cigarra) e Poesias para crianças. Malu foi minha primeira personagem. Ano retrasado fiz novamente oficina com o mestre Carrero, sempre procurando novas dicas com esse genial escritor. Durante o tempo que o conheço,fiz uma homenagem na Revista Perto de Casa e no Conversando Perto de Casa na Livraria Jaqueira. Nos seus 70 anos quero apenas firmar minha admiração e desejar que esteja ainda muitos e muitos anos ao nosso lado.

Setenta abraços, Carrero! Saúde, felicidade e livros!

* Esse texto, escrito em 2006, foi readaptado em novembro de 2017, por ocasião de uma antologia homenageando os 70 anos do escritor Raimundo Carrero.