O DNA DA CRISE
Na cultura militar Brasileira, existe o "Conto do Soldado Perdido", que diz o seguinte: durante um treinamento, após alguns quilômetros de deslocamento noturno mata adentro, o comandante de pelotão fez a contagem dos soldados, para assegurar que nenhum soldado havia se perdido na mata. Nessa contagem, o resultado chamou a atenção, pois havia um soldado a mais. Daí, o comandante exclamou: "bom, melhor sobrar do que faltar! Vamos em frente", e o pelotão seguiu... Ocorre, porém, que esse soldado a mais, pertencia a outro pelotão que também participava do treinamento. Esse soldado atrapalhado, em algum momento, por engano, desgarrou-se do seu pelotão e juntou-se ao outro. Resultado: o pelotão desfalcado passou a noite inteira procurando o soldado atrapalhado, pois todos julgaram que o mesmo havia se perdido e precisava de ajuda na mata escura... Esse conto serve para ilustrar a importância do planejamento, da coordenação e do controle nas atividades humanas, de um plano micro até o âmbito macro. Se não, vejamos...
Há muito, o Brasil é um celeiro alimentar para si e para o mundo. A produção é sempre farta. Água e outros recursos naturais também. Então, temos grande vantagem em relação a outros países menos favorecidos pela natureza, certo? Nem sempre! A fartura sozinha não garante o atendimento das necessidades, nem a solução de problemas, o bem estar e o desenvolvimento. Abundância mal administrada, aliada à sensação de infinitude dos recursos pode levar à ruína. Será que nos acomodamos diante da fartura e negligenciamos o planejamento?
Hoje, enfrentamos uma pandemia que ameaça provocar graves consequências, como mortes, desemprego e fome. Todas essas ameaças não se dão por carências, escassez, mas por deficiências de planejamento, coordenação e controle das ações de enfrentamento ao vírus.
Historicamente, o brilho da prodigiosa produção brasileira é ofuscado por nossas profundas carências. Nossos problemas fundamentais, diretamente relacionados à desigualdade social, jamais foram enfrentados de forma honesta e decisiva. Ou seja, independentemente de qualquer pandemia, o Brasil é um celeiro alimentar em que parte da população ainda passa fome. Absurda contradição!
Então, estamos numa nova crise? Não. O novo vírus apenas inflamou nossa eterna crise, evidenciando, combinando e potencializando nossas mazelas sociais, especialmente a precariedade da infraestrutura urbana: favelas, falta de saneamento básico, água tratada, deficiência na coleta e no tratamento do lixo, caos no SUS, problemas de mobilidade e transporte coletivo, subempregos, etc... Ainda acrescentamos a esse perverso caldeirão a falta de educação de boa parte da população que, sob vários aspectos, também ajuda na propagação do vírus... Resta claro que toda a sujeira social escondida debaixo do tapete político veio à tona com o Coronavírus.
Enquanto olharmos apenas para a produção bruta de riquezas do país, fechando os olhos para as condições de vida da maioria da população, seremos aquele comandante que se deparou com um soldado a mais e nada fez. Progresso não se mede pela produção, mas pelo desenvolvimento humano mediante acesso amplo à riqueza produzida.
Hoje, diante da pandemia, estamos agindo como os integrantes do pelotão desfalcado pelo soldado trapalhão: procurando no escuro a solução para o problema derivado do descaso anterior, ignorando o que aconteceu de fato. Sempre que nos deparamos com um problema e não o resolvemos, a consequência é a ampliação desse problema e/ou a geração de outros vários problemas.
O público e o privado batem cabeça numa tensão desesperada diante da flagrante dificuldade de articular soluções numa sociedade gravemente desarticulada, enquanto o vírus segue articulando nossos velhos problemas numa sinistra engrenagem do caos anunciado.