Aniversário

São os 84 anos dele. Uma grande idade, não é todo mundo que a alcança, ainda mais lúcido e totalmente independente. Apenas quase dois por cento da população gaúcha tem essa idade ou mais, são sobreviventes - pelo Censo 2010, 1.8%. Entretanto, ele alcançou e hoje é o aniversário dele. E alcançou num momento em que esses dois por cento de gaúchos correm risco, extremo risco, devido à pandemia, só pelo fato de terem chegado tão longe na vida, ainda mais por serem cardícacos e diabéticos, como ele.

Um dos quatro ainda vivos dos quatorze da família original: pai, mãe e doze filhos. Família vivedeira, essa. O pessoal, principalmente as mulheres, costumam passar dos 80 anos e alcançar os 90. Sua tia e madrinha chegou aos 101, perto de completar os 102, ainda lúcida. Toda essa gente segue os padrões de maior longevidade dos gaúchos dentro da realidade brasileira, todavia foram gerações posteriores à Gripe Espanhola e anteriores à COVID-19, pandemias que interrompem o ciclo de vida natural das pessoas em todo o planeta. E os gaúchos vivem nesse planeta, também.

Hoje ele não poderá reunir os filhos e netos e compatilhar um bolo tricolor dietético, como adora fazer. O perigo do contágio e o risco de vida, real, o impede. Contudo, as maravilhas da tecnologia gerada pela inteligência humana possibilitam que ele os veja e fale com eles virtualmente, podendo até ouvir cantarem Dama de Vermelho, canção que adora, mesmo sendo gremista dos quatro costados. Ah, por falar nisso, a esposa, setentona, é colorada. Lidam com o isolamento social mediante o abnegado cuidado de parentes e profissionais da saúde, todos gente imprescindível e generosa, pessoas do bem, comprometidas.

A propósito, ontem li alguém comentar numa rede social, sobre o idoso de 98 anos que faleceu em Triunfo, algo como "tinha 98 anos e ainda dizem que foi a COVID-19 que matou ele". Como assim, oras? Claro que foi a COVID-19! Imagina que chegasse à mesma idade da madrinha do aniversariante do dia? Seriam mais três anos de vida!!! Quem pode garatir que, sem a pandemia, não teria vivido até mais do que isso? Tem gente de 40 anos que não durou esses quatro meses que já se passaram depois do primeiro óbito confirmado no Brasil; então, três anos é muito tempo, gente, muito tempo, mas bah, se é! Quem de nós pode garantir quanto tempo viverá ainda, na atual situação? E, além disso, ele certamente era pai e avô de alguém. Quem não quer o avô e o pai mais três meses ou três anos consigo? A insensibilidade e total falta de empatia de alguns, nesse grave momento, é muito triste e inumana.

Voltemos ao aniversariante. Aos 84, pela herança da expectativa de vida familiar, pode ainda esperar ter uns dez à quinze anos mais nesse mundo, quiça até comemorar um centenário. Sua saude está boa, todas as doenças crônicas controladas, é um pessoa ativa. Então, hoje, quando a família virtualmente reunida cantar "muitos anos de vida", não será apenas da boca pra fora, será uma possibilidade concreta. Essa pandemia está tirando toda essa expectativa de milhares, mas a esperança, como dizem, é a última que morre, e as pessoas - a maioria delas, pelo menos - são feitas de amor, fé e esperança. 



Crônica publicada no site do jornal Portal de Notíciashttps://www.portaldenoticias.com.br/colunista/53/cronicas-artigos-joao-adolfo-guerreiro/