Apontamentos (incompletos) sobre a liberdade

Quanto mais obedientes, mais livres somos.
(santo Agostino)
 
     Uma questão que me inquieta amiúde é a liberdade. Um conceito equívoco, discutido nas mais diversas áreas do saber. Particularmente, o campo da fé precisa tê-lo em boa conta e, apesar das dificuldades de entendimento que dele derivam, sem uma noção clara do que seja a liberdade humana e a liberdade divina, o próprio ato de fé e sua prática podem ficar comprometidos, lesados ou distantes da sua essência.
 
     Deus corre riscos quando dá ao ser humano o dom da liberdade? É possível experimentá-la sem condicionamentos? Se sim, é certo afirmar que não há limites na liberdade? Se não, como justificar suas fronteiras? Percebe-se logo o quanto é exigente sua conceituação. Não podemos olvidar, para que não confundamos liberdade com libertinagem que, dito a grosso modo, significa fazer o que quiser, que junto à ideia que se teça de liberdade, necessariamente, é preciso ter presente a dimensão da consciência, da ética, da moral, valores estes condicionados a outros inúmeros fatores – educação, política, costumes, cultura e, claro, religião.

     Talvez aqui no vemos diante dos primeiros limites da discussão acerca da liberdade: os pontos de partida. Por um lado, eles delimitam muitas coisas, por outro, alargam os horizontes da razão. Se levamos em conta o nome Deus nos vemos diante de agravantes sérios, seja do ponto de vista teológico, filosófico, psicológico, histórico e cultural. Se nos furtarmos à ideia de Deus, igualmente, outros pesos e medidas serão usados de modo arbitrário ou inconsequente ao se tentar compreender o que seja liberdade.

     Como não há consenso possível, é preciso firmar os pés em alguns pressupostos. Eu parto do princípio de que há Deus, há fé e ambos precisam ser levados em voga ao se abordar a pauta liberdade. Se não houvesse Deus, seríamos escravos de nós mesmos. Porque Deus existe e nele não há possibilidades nenhuma de habitar o mau, somente em si e a partir de si, pensamos ser possível uma liberdade sadia, justa, equânime, verdadeira, prazerosa e que cause benefício não só àquele que a experimenta, mas também a todo o restante da humanidade. Um exemplo claro do que seria uma liberdade que traria proveito, supostamente, apenas ao indivíduo, é o uso livre da inteligência para a construção de um instrumento que deixasse rico seu progenitor, embora lesasse uma multidão – uma arma, um programa, um vírus. Um exemplo do que entendemos ser a correta liberdade é a criação de algo – um remédio, um utensílio – ao qual todos tivessem acesso, sendo que quem o descobriu herdasse como recompensa exclusivamente o bem-estar dos que usufruírem de sua ideia.

     A partir da fé no Deus revelado por Jesus Cristo, há uma formação de consciência nova que nos faz usar a liberdade para o bem do outro. Há, contudo, a realidade do pecado, a qual nos fere, que impede a plenitude desse bom uso que deveríamos fazer da nossa liberdade. Dos evangelhos deriva para nós a afirmação de que Cristo usou sua liberdade de forma plena para o bem de toda a humanidade, quando escolheu ser obediente à vontade de seu Pai. Igualmente Maria em seu sim livre e disponível à vontade de Deus. Igualmente deveria ser conosco. Partindo da fé em Deus, como ser o mais livre possível? Sendo livre para o bem do outro. Tarefa que exige muito, mas que segue os passos de Jesus Cristo. A liberdade vence o egoísmo. Quando a vida é serviço, a liberdade se torna verdadeiramente um dom. Quando a vida é baseada em interesses pessoais, a liberdade se torna escravidão, jugo, depressão, morte – para si e para os demais. O exercício da liberdade em Deus gera uma alegria e uma felicidade incomensurável e sempre vem acompanhada de pequenos sacrifícios. Somente aquele que conquista sua liberdade em Deus, vive mais profundamente o mistério da graça, aquela com a qual o Apóstolo Paulo saúda os destinatários de suas cartas. Só que para isso é preciso perder e se perder em Deus. É aqui que muitos esbarram, não sendo capazes de experimentar o bem que ganhariam, não fosse o medo egoísta de abrir mão.