O Matuto e o Anjo da Guarda - Debate
Num imbati de pregunta e resposta mi vi cum esse dito meu anjo, numa peleja em qui as resposta, vinha antis das pregunta eu fazê!
Preguntei: Si ixisti memo, cumé qui nunca ti vi nen ti iscuitei? – Viste por acaso as primeiras mãos que te tocaram no momento em que nasceste? Viste quem te limpou, quem te banhou, quem te alimentou, quem te embalou nesse longo tempo em que mais precisaste?
Intão pur que dexo qui us menino du meu tempo, num tivesse sapatu nus pé? – Isso não me compete! Dos costumes e das durezas dos tempos, ninguém pode escapulir.
Pur que intão num mi livrô dus ispinho du juá i das pedra qui mi arrancava as cabeça dus dedão? – Ora! Isso são dores menores, passageiras. Esqueceste das canas de milho, dos tocos de bambu, essas lanças que transpassam os pés, nelas tu nunca pisaste.
I us maribondo qui mi inchava a cara, as oreia, us braçu, tudo quanto é lugá, cum suas ferruada queimante, pur que qui premitiu? – Tudo é parte do ensino de respeito à natureza, eles estavam lá quietos, foste tu que os xuxaste com a vara. É melhor que te lembres das jararacas, que rotineiramente apareciam em volta da casa, ali, no terreiro onde brincavas; delas não conheceste a picada.
Mais pur que tamém qui mi dexo sinti aquela dor duída du capim serenado mi roçano as friera dus dedo? – Tua pergunta é bem infame! Bem sabes o que existia, lá onde tu punhas os pés; no capinzal, no entre as guanxumas, no fundo do rego d’água, quando te metias a com a peneira, buscar lambaris. Sabes bem das cascavéis, das jararacuçus de dois metros, da abundância de serpentes.
I dus trabaio qui eu minininhu tinha qui fazê? Aquele dibuiadô chatu, us tijolo pesadu di levantá; vigiá as galinha pá num cumê us amenduim no terrero, levá as vaca nu pasto i vortá dinoite, cum medu di assombração; inda levá armoço na roça, pur que? – Não sejas tão ingrato! Esqueceste que aos domingos, com outras crianças, brincavas no debulhador, onde eras o motorista nas romarias pra Aparecida? Esqueceste do leite que bebias ainda quente, tirado direto na caneca? Esqueceste dos deliciosos bijus de farinha feitinhos na hora, que tu comias lá no monjolo? Da garapa docinha da cana, colhida ali na bica do engenho, acabada de moer? Da puxa raspada da bica da tacha ou da beira do gamelão, esqueceste? E das broas e dos biscoitos, das quitandas de todo tipo, tirados quentes na boca do forno? Também esqueceste? Não te lembras das pamonhas, feitas em mutirão de adultos, junto com a farra da criançada? Esqueceste de que te deitavas no pomar, e farto, olhavas as nuvens que vazavam por entre as pencas de mexericas? Do que mais esqueceste?
Essi lenga lenga di pregunta i resposta pareci que num tem fim. – Sei muito bem por onde andaste. Sei da tua segunda infância, da tua adolescência, da tua juventude. Dos teus erros e acertos, das derrotas e conquistas. Vi todos os teus sorrisos, contei cada gota das tuas lágrimas. Conheço todas as cicatrizes do corpo e as feridas que ainda te sangram na alma. Sei dos corações que te amam, sei do amor que tens pra dar.
Saibas que sim podes me ver. Saibas que sim podes me ouvir. Saibas que o momento está longe ou perto. Saibas que o segredo é caminhar. Saibas que quando o “click” se der, verás que nunca me escondi. Verás então, que a cegueira estava em ti.