OS COFRES DE SUA ALTEZA EM SANTA CRUZ DAS FLORES

OS COFRES DE SUA ALTEZA EM SANTA CRUZ

Sua Alteza era D. João III, o Piedoso, os cofres eram dois, “dous cofres douro” da Mina, e a Santa Cruz era possivelmente a mais remota de todas as Santas Cruzes do Império, Santa Cruz das Flores. Corria o mês de Maio de 1548. D. João III ia no vigésimo sétimo do seu longo reinado e o Império Português esboroava-se por dentro, como acontece a todos os impérios que se prezam.

A desastrada história dos Cofres de Sua Alteza, no pouco que dela sabemos, é uma janelita aberta sobre esse esboroamento interno do império. Os cofres vinham da Mina, num navio chamado Esmerilhão que arribou a S. Tomé prestes a afundar-se. Em S. Tomé estava aparentemente de partida para Portugal a nau Nossa Senhora da Misericórdia e o governador da ilha meteu-lhe dentro o capitão do abandonado Esmerilhão , e o respectivo escrivão, cada um com o seu cofre de ouro. Eram os cofres de Sua Alteza tinham de ir por portadores idóneos, ou talvez os dois tivessem mais a ver com o ouro que vinha nos cofres do que o simples transporte.

O facto é que a Nossa Senhora da Misericórdia também se abriu no mar, e meteu tanta água que ameaçou ir a pique. Isto das naus se abrirem no mar era o pão nosso de cada dia naqueles heróicos tempos do império. As naus traziam carga a mais e mal arrumada. Caixões e fardos pesadíssimos e tantos que às vezes já não vinham só “dentro em seu bojo, mas pelas cobertas e por fora do costado... e o leve em baixo e o pesado em cima, o que não só descompassa as naus , mas basta qualquer ocasião para abrirem e se perdem tantas...”

E foi assim aberta e a meter água que a Nossa Senhora da Misericórdia arribou às Flores. Os dois cofres de Sua Alteza e os dois personagens que os traziam ficaram lá, em terra firme, à espera de transporte mais seguro, e a nau, mesmo assim aberta e a meter água, seguiu viagem. Era corajosa aquela gente...

Ao chegar ao porto de Angra, o Corregedor dos Açores, Dr. Luís da Guarda visitou a Nossa Senhora da Misericórdia e inteirou-se do que acontecera ao ouro da Mina e aos seus portadores. E escreveu logo a Sua Alteza dando-lhe conta das suas diligências para proteger os cofres e os seus portadores.

“...Passei uma carta para os juízes da dita vila (Santa Cruz das Fores) em que lhe mando que tanto que lhe for apresentada, logo aposentem os ditos capitão e escrivão com os ditos cofres em casa do mais rico homem que houver na dita vila e onde mais seguros possam estar e que notificassem aos ditos capitão e escrivão que se não embarcassem em navio nenhum com os ditos cofres nem sem eles até ... não vir a armada que há de vir buscar as naus da Índia...”

E foi assim que no ano da graça de 1548 a Vila de Santa Cruz das Flores, mai-los seus juízes e seu mais rico homem foram os guardiães dos dois Cofres de Ouro de Sua Alteza.