Zé Perri bebia refri por aqui

O dia de hoje marca os 120 anos do nascimento do escritor e aviador francês Antoine de Saint-Exupéry (1900 - 1944), o aristocrático (era filho de um conde) autor de O Pequeno Príncipe. O que talvez alguns por aí não saibam é que, quando ainda não era um escritor mundialmente famoso - iniciava a carreira nesse período -, ele esteve por Porto Alegre a serviço e deu umas bandas pela capital. É...

PIONEIROS DOS CÉUS
Pois então, entre os anos de 1929 e 1931 ele e outros jovens e desbravadores aviadores franceses, como Henry Guillaumet (1902 - 1940) e o galante Jean Mermoz (1901 - 1936), iniciavam as rotas postais aéreas entre Europa, África e América do Sul, passando por Brasil, Argentina e Chile. Isso no tempo do Ariri Pistola, no começo da aviação comercial, com lenço e documento, mas sem instrumentos de vôo sofisticados e com aviões rudimentares e instáveis. Eram muito corajosos e determinados esses rapazes! Fizeram muita grana e muita fama, vivendo intensamente e morrendo cedo e tragicamente.

No Brasil a empresa onde trabalhavam, a Aéropostale, possuía 11 campos de pouso para escalas e pernoite: Pelotas, Porto Alegre, Florianópolis, Santos, Petrópolis, Rio de Janeiro, Vitória, Maceió, Recife, Natal e Fernando de Noronha, conforme a historiadora catarinense Mônica Cristina Corrêa. Assim, antes de ir para Buenos Aires, o último ponto de apoio era em Pelotas, mas ali não consta que Exupéry tenha ido à cidade. Já em Porto Alegre...

ZÉ PERRI EM PORTO ALEGRE
Buenas, foi Nilo Ruschel que, em seu livro Rua da Praia, nos contou das andanças dos pilotos franceses por aqui. Claro que eles eram personagens muito populares, por seus feitos profissionais então inéditos, última novidade tecnológica. Vestindo jaquetas de couro, só por eles usadas naqueles tempos, sentavam no Café Colombo, situado na esquina da Rua da Praia com a Ladeira, onde tomavam Hidrolitol, um tipo de refrigerente de antanho. Ruschel nos informa ainda mais: "Convidados pelo pioneiro da aviação rio-grandense, Pepe Daudt [Alfredo Corrêa Daudt], os dois ases franceses [Saint-Exupéry e Mermoz] encantaram-se com uma churrascaria, bem à gaúcha, na chácara de dona Lina Daudt, na Pedra Redonda. Jean Mermoz ia nadar, às vezes, com Carlos Maria Bins, nas águas do Gravataí. Oh, Saint-Ex (Saint-Exupéry) adorava o céu, e Mermoz, as mulheres de Porto Alegre! Mermoz, belo físico de homem, atlético, cabeça de artista, era o dono do céu, da terra e do mar." Até coloco a foto de Mermoz ao final do texto, para a mulherada conferir se era pra tudo isso sua fama de "pão francês". Ele é ícone na França e, no Brasil, nomeia escolas em São Paulo e Rio de Janeiro, condomínio no Rio Grande do Norte e rua em Recife, vi no pouco que pesquisei.

Entretanto, nos interessa aqui é falar de Saint-Exupéry, o motivo de escrevermos essa crônica, não é mesmo. Sim, então cadê o Zé Perri do título? Pois gente, o Zé Perri é ele mesmo, ora pois! Esse apelido foi dado pelos pescadores de Campeche, em Santa Catarina, onde igualmente passavam uns dias e interagiam com a população local. O pessoal não conseguia pronunciar seu nome na língua natal de Vanessa Paradis, então ficou Zé Perri mesmo. Tem até documentário sobre isso: "De Saint-Exupéry a Zeperri", 2011, uma co-produção Brasil/França dirigida por Branca Regina Rosa, disponível na internet.

NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
Como eu dizia, nossos intrépidos aviadores tiveram vigorosos brevês e vidas breves: Mermoz morreu durante a 25ª vez que realizava a travessia transoceânica Congo/Brasil - da qual foi pioneiro - , em 1936, dado como desaparecido; Guillaumet, amigo íntimo de Antoine e que, como ele, também casara na Argentina (será que as hermanas deram azar pros gauleses?), foi abatido, durante vôo sobre o Mar Mediterrâneo em 1940, por um caça italiano, sem deixar vestígios. Claro que, sobre Exupéry, contarei mais detalhes.

Quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial, ele pilotou pela Força Aérea Francesa até a rendição do país, após o que se exilou nos Estados Unidos. Lá lançou mais alguns livros, como O Pequeno Príncipe, em abril de 1943. Sim, o grande clássico universal, que já foi traduzido em uma ou duas centenas de idiomas e vendeu entre dezernas e centenas de milhões de exemplares (não arrisco dar números precisos, pois essas informações variam muito na internet), foi lançado primeiro em inglês e não em francês, a língua materna do literato. E mais: as aquarelas originais, de autoria de Exupéry, foram usadas somente na primeira versão americana; a edição francesa, publicada em novembro de 1945, quando o escritor já falecera, teve de reproduzir os desenhos do livro estadunidense.

Estando nos EUA quando o pais entrou para a guerra, Antoine mexeu suas asinhas a fim de voltar para sua esquadrilha, que agora apoiava os Aliados. Na verdade já estava velho e ultrapassado para os modernos e sofisticados caças americanos, que exigiam pilotos com no máximo 35 anos e em ótima forma física, não um quarentão acima do peso já alquebrado pelos acidentes dos tempos de Aéropostale. Mas, sabem como é, o pioneiro aviador e famoso escritor teve QI suficiente para conseguir seu intento. Contudo, deveria ter ficado em Nova York, sentado e com os pés chão, pintando e escrevendo. Em sua quinta missão, em 31 de julho de 1944, desapareceu na costa francesa durante vôo de reconhecimento.

DÉCADAS DEPOIS
O que acontecera a Antoine de Saint-Exupéry? Ficou o mistério. Alguns aventavam a possibilidade de suicídio. Para esses, as 44 vezes que o Pequeno Príncipe vê o pôr do sol em seu pequeno planeta seriam a idade da morte do autor, enquanto o desaparecimento do menino no deserto, ao final do livro, seria uma metáfora para a forma como ele e seus colegas sumiam do mundo. Somando-se a isso, a rosa, única personagem feminina do livro, representaria a sua esposa, Consuelo, com a qual estaria tendo problemas conjugais.

Teorias a parte, em setembro de 1998, na costa de Marselha, pescadores encontraram uma pulseira de identificação com os nomes de Antoine de Saint-Exupéry e Consuelo. O fato chamou a atenção do mergulhador Luc Vanrell. Em setembro de 2003 (vamos encurtar essa história e esse texto), muito trabalho e muita burocracia depois, Vanrell mergulha no Mediterrâneo e encontra, em parte dos destroços, o número de fabricação 2734, correspondente ao avião pilotado pelo escritor. Bingo!

Vanrell, porém, não se deu por satisfeito e resolveu desvendar todo o mistério: qual o motivo da queda da aeronave? Furungou tanto que em 2008, associado ao investigador de aviões de guerra perdidos Lino van Gartzen, chegou ao ex-piloto de guerra alemão Hosrt Rippert, de 88 anos. Ao ser procurado por Lino, disse: "Podem para de procurar, eu derrubei Saint-Exupéry". O alemão, que revelou ter lido as obras do francês na juventude, acrescentou: "Se soubesse que era ele, jamais teria abatido o avião". Será mesmo? Eu, particulamente, duvido que teria dado arrego, mesmo assim.

Na verdade Rippert não viu o piloto. Apenas recebeu a missão de interceptar e abater um avião não identificado que fora captado pelos radares do Eixo na região. Ao localizá-lo voando a baixa altitude, cerca de dois mil metros, facilmente atirou e derrubou-o, caindo na água sem que ninguém dele se ejetasse. Só depois, ao tomar conhecimento de que o ilustre literato havia sumido em missão naquela região e naquele dia, soube da identidade de sua vítima, decidindo manter tudo em segredo.

Claro que tem mais umas coisitas nessa história, mas o fundamental era isso. O fato certo e confirmado é que o grande Zé Perri esteve no Rio Grande do Sul e tomou uns refris por aqui. Vai que até sobrevoou nossa região, apreciando de cima o Jacuí na altura de Charqueadas, São Jerônimo, Triunfo, General Câmara e Santo Amaro? Quem sabe, né? Se nem o alemão, no céu, viu que era ele quando meteu bala, quanto mais alguém daqui, com os pés no chão, o teria reconhecido: "Olha lá em cima, o Zé Perri, o francês aquele que toma Hidrolitol no Café Colombo, lá na capital!" Sem chance.




Crônica publicada no site do jornal Portal de Notíciashttps://www.portaldenoticias.com.br/colunista/53/cronicas-artigos-joao-adolfo-guerreiro/