Enrolando Línguas - Árabe, urdu e português
Viajar pelo mundo, ouvir e tentar falar outros idiomas tem seus encantos e decepções. Kostas era um motorista grego, cinquentão na metade da década de 1970, nascido em Trieste, sobrevivente de todas as intempéries bélicas do Sec. XX. Era motorista da embaixada do Brasil em Atenas. Como dizia um colega ao mencioná-lo, Kostas "falava todas as línguas do mundo ... e todas muito mal". Maldade desse colega, que perdia um amigo, mas não perdia a piada. Kostas, se realmente possuía essa vulnerabilidade, com certeza tinha virtudes, pois é elogiado numa das edições de "Solo de Clarineta", de Érico Veríssimo. À toa não deve ter sido.
Mas vamos à nossa história. Na década de 70, o MRE mandou para a Arábia Saudita um motorista em vias de se aposentar. A missão transitória seria um prêmio para o zeloso funcionário, que não conhecia do mundo nada além dos morros e do centro do Rio de Janeiro. Sêo Lupercínio não era, digamos, muito bom em línguas. Na verdade era péssimo. Não falava nenhuma, a não ser o carioquês sem jaça, aprendido nas esquinas da vida na bela Guanabara. Isso de um lado.
Do outro, temos um jardineiro paquistanês muito prestativo, humilde e simpático, o Mohammad Yliar, que falava apenas sua língua, o Urdu, e, apesar de ter vindo pequeno para a Arábia Saudita, ainda fazia das tripas coração para se comunicar em árabe. Também tinha a mesma deficiência linguística de “Sêo” Lupercínio, o que não o impedia de gostar muito de conversar.
Pois bem. Um dia, o destino fez os dois se encontrarem. Sêo Lupercínio, motorista, trazia o chefe e, depois de dispensado, ia aguardar na cozinha para quando precisassem dele. Yliar, logo depois de molhar as plantas, cortar a grama e cuidar de um pezinho de melancia que teimava em resistir ao calor de 40 graus, entrava na cozinha para fazer café, chá e outros quetais. Era abrir a porta e Lupercínio se animava, já com a língua coçando para conversar com Yliar. Logo estavam papeando animadamente. Como nenhum dos dois falava a língua do outro, criou-se entre ambos uma amizade surrealista, triangulada pelo árabe e pelo inglês. O paquistanês falava em árabe, misturado com inglês, tentando, quem sabe, ser delicado com o estrangeiro, esforçando-se para caminhar a metade do caminho. O brasileiro retrucava em carioquês mesmo, cheio de ginga. Daí, um contava sobre o filho que ia se formar no segundo grau, o outro concordava, yes, yes, dizendo que era assim mesmo, que ninguém deve andar de navio sem saber nadar. Um falava sobre fio dental nas areias de Copacabana, o outro concordava: iria fazer o mesmo no Ramadã seguinte. Às vezes, depois de gostosas gargalhadas, caíam em intrigante silêncio: na cozinha ouvia-se apenas o ruído do ar condicionado. Talvez estivessem digerindo as histórias que tinham ouvido (e quem sabe até mesmo entendido) remoendo lembranças, revisitando o passado.
Depois desses silêncios, a cada volta do ruído do ar condicionado, como que despertavam para conversar de um ponto onde nunca tinham parado, respondendo a uma pergunta que jamais fora feita, perguntando algo a propósito de um assunto que sequer fora abordado. Assim, passavam umas boas horas na parte da manhã, “trocando ideias”, contando causos, rindo, entremeando silêncios de profunda reflexão, dando-se conselhos. Algumas vezes, o chefe saía de sua sala para ver o que estava acontecendo na cozinha. Como que arregimentando testemunhas, chamava os funcionários e íamos todos espiar atrás da porta o inacreditável “diálogo” dos dois.
O “diálogo de surdos”, ou monólogo paralelo, não passou de uma ligeira comédia que ajudou a encolher os longos dias naquele país de calor sufocante. Chegamos a fazer – eu me confesso – muitas piadas sobre os dois.
Nos dias seguintes à partida de Lupercínio, notei que Yliar passou muitos dias triste. Perguntava quase toda hora se havia alguma notícia do amigo, sossegou apenas quando recebeu um postal pelo correio oficial, meses depois, todo regado a fio-dental de um domingo de praia carioca e umas duas ou três frases rabiscadas no verso, que me pediu para traduzir e que nunca respondeu. Com o decorrer dos meses, também experimentando as agruras de uma imensa saudade de casa, comecei a refletir sobre a insólita amizade, que não necessitou de tradutores nem intérpretes, submetida apenas à ditadura da solidão, aquela que nos faz implorar por atenção. Tinha sido, de alguma forma, uma lição, e me fez especular, posteriormente, por vezes até com certa ternura e mais tolerância, sobre os mistérios e tropeços da (in)comunicação e, por que não dizer, da própria solidão humana.