O Infantil do Zé Emídio

Só quem viveu isso pode imaginar a emoção, o entusiasmo, a alegria e o mundo de sonhos que representava treinar no Infantil do Zé Emídio. Era uma família, ele era o paizão, o “Sô Zé”. O “Infantil” era uma instituição. Antes da minha época, ele já tinha formado jogadores para o Clube Atlético Pitanguiense, o CAP, e conquistado amigos para o resto da vida.O Ifantil era o que se chama hoje de “base”. Na época, na onda das conquistas do futebol brasileiro nas copas de 1958 e 1962, quando o país deixou de ter “complexo de vira-latas”, como dizia Nelson Rodrigues, jogar futebol passava a ter uma aura não só romântica, mas também um status de profissão rentável. Todo garoto sonhava em ser Pelé, Garrincha, Bellini, Nilton Santos, Amarildo, Vavá, Dida etc. Isso quando ser campeão do mundo dava direito a um fusquinha do governo.

Voltando ao “Sô Zé”, como todos seus discípulos o chamavam, era natural seu espírito de liderança. Além do futebol, formava jovens para a vida, de acordo com os padrões católicos, e liderava um grupo de meninos na Congregação Mariana, do qual também fiz parte. Casou-se com uma prima-primeira de minha mãe, Terezinha Tavares, irmã do Zé Tavares, que também ficou conhecido como treinador de base, principalmente na região da Fábrica e Chapadão “Sô Zé” ganhava a vida como operário da então Companhia de Tecidos Pitanguiense, depois Santanense, onde se aposentou. Um dos filhos do “Sô Zé”, o Rogério “Cabeção”, foi um dos maiores artilheiros do CAP: grande alma que nos deixou tão cedo! Outro dos filhos, também bom de bola, foi o Rodrigo, que seguiu carreira de advogado.

O Infantil não tinha chamada de alto-falante, isso era pros treinos do primeiro quadro de CAP e Pitangui Esporte Clube, o PEC, os dois rivais da cidade. Era ali pelas três e meia da tarde que começavam as chamadas para os treinos pelos alto falantes. As músicas das chamadas eram “Diana”, com Carlos Gonzaga, ou no original, com Paul Anka. As chamadas se repetiam, outra vez “Diana” ou “Carol,I’m no but a fool”, com Neil Sedaka. Mas isso era para os “grandes”.

O Infantil não tinha as chamadas, mas tinha os treinos. Os dias eram diferentes dos “grandes” e a rotina, para os meus lados, era a gente se concentrar no alpendre lá de casa, no Beco dos Canudos, ou na escadinha da capelinha do Bom Jesus. Chegando a hora, descer a rua da Paciência, já de calção e chuteira, passar pela praça da Estação e subir o morro do Lavrado. Nesse bairro ficavam os dois “estádios” dos rivais: na metade do morro, o do PEC, estádio “Homero Silva”; mais acima, o do CAP, “Iraci Severino”. Antes de encarar a escalada, era bom olhar o céu, ver se ia chover ou não. Se chovesse, não dava quórum. Bom, estando lá em cima, não dava pra perder a viagem, jogava-se até quando futebol virava natação ou patinação.

Os treinos constavam de individual – que todo mundo tentava matar – e o coletivo. Primeiro, dar voltas no campo, mero aquecimento, às vezes subir e descer as arquibancadas, para depois fazer os exercícios. Por último, o tão esperado “coletivo”, muitas vezes ataque contra defesa.

Velhos tempos dos campos de terra: na seca, um redemoinho podia esconder momentaneamente os artistas dos olhos da plateia. Alguns jogadores usavam a poeira a seu favor. Mauro Ângelo de Lacerda, um craque da geração anterior à minha, deu uma lição disso: num treino, na meia-lua, enganou toda a defesa, levantando poeira com o lado da chuteira e, aproveitando a cegueira momentânea dos beques, avançou incólume para o arco adversário: golaço, entrou com bola e tudo, aproveitando o fator surpresa.

Não dá pra esquecer certos detalhes dos campos. No campo do CAP, na ponta direita, chutando para o lado da Penha, entrando na grande área, nascia um gramadinho roscofe no meio do qual um pedregulho se levantava entre os fiapos de grama. Um tombo ali dava pra ralar o joelho e cada tombo um curativo. Já o campo do PEC era mais de piçarra, tinha seus pedregulhos, mas talvez fosse menos “letal”.

No tempo de frio, para compensar a tarde mais curta, “Sô Zé” deixava treinar até a bola sumir no mato. Maldade: até ficar escuro e a bola começar a sumir no mato ou descer rolando o morro e parar no muro do campo do PEC. A bola – entendam - no singular; nada de muitas bolas, quando muito duas ou três. Todas tinham que ser costuradas periodicamente, até ralar no bagaço ou estourar a câmara de ar sem ter mais recurso: câmara de ar se remendava e capota ia pro sapateiro costurar. Maleta de primeiros socorros, alguém me socorra: o que continha? Os meninos - em dia de jogo, fique claro- tinham mercúrio, “merthiolate”, iodo, esparadrapo, gaze e um tubinho de creme para massagem... Mais alguma coisa? É que, nos treinos, ninguém pensava nisso, se alguém se machucava ia pra casa e aí resolvia o assunto.

Os jogos de camisas do Infantil eram comprados pelos próprios jogadores, sistema “vaquinha”, ou doados por algum empresário-torcedor ou algum candidato local. Camisas sem publicidade. Depois do jogo, eram lavados pela esposa do “Sô Zé”. Enxugando no varal, na segunda-feira, faziam lembrar o feriado nacional da música “Chão de Estrelas”, colorindo o mundo de vermelho e branco dos uniformes com as cores do CAP.

De vez em quando, na hora da distribuição das camisas para o jogo, sumia uma e se resolvia com uma camisa reserva, mesmo fora do padrão. Fazer o que, né? Exemplo disso acontecia até nos clássicos CAP e PEC. Na capa do livro do” Barrica”, num felicíssimo flagrante – aliás uma cena de plástica maravilhosa - há um jogador do PEC saltando para cortar o cruzamento e nota-se um dos defensores com uma camisa diferente das demais: pelo menos era alvinegra, cores do clube. O PEC tinha um uniforme com uma lista diagonal, tipo a do Vasco da Gama, e outra como a do Atlético Mineiro.

Naquele tempo, a bola era muito pesada.Quando sobrava para o Infantil, já estava bem judiada, tinha sido descartada pelos “grandes”. Era do mesmo tamanho e peso para meninos e adultos, a famosa G-18. As chuteiras tinham travas de couro, pregadas na sola. Com o uso, as travas se gastavam e os preguinhos começavam a ferir a sola dos pés. Trocar as travas e sanar o problema era serviço para os sapateiros da época: Ducha, Panta, Timote e outros. As chuteiras eram propriedade privada, não eram jamais fornecidas pelo clube. Não me lembro de marca de chuteira, a não ser a Gaeta. Era sinônimo de coisa chique e os felizardos exibiam aqueles troféus de couro para os menos afortunados.

A minha passagem pelo Infantil do Zé Emídio começou aí pelos meus 10, 11 anos e durou até os 16, 17 anos, quando passei a treinar com os titulares do CAP. Anos depois, o “Sô Zé” desceu para o PEC, por desentendimento com a diretoria do CAP. Vivi muitas emoções jogando pelo Infantil em Pitangui, Pará de Minas, Martinho Campos, Pompéu, no SESC de Venda Nova, Leandro Ferreira, Brumado, Onça, Conceição do Pará e outros lugares.

Das lembranças, uma das marcantes foi o primeiro gol em treino, no Hugo Bicalho. Chutei a bola pesada, botei toda a força que tinha, ele defendeu, eu chutei de novo, meio sem jeito, até finalmente ver a bola cruzar devagarinho a linha de gol. Foi meu primeiro em traves oficiais. No entanto, meu auge no infantil foi quando fiz um “golaço”, segundo diz o próprio Zé Emídio, no livro do “Barrica”, em jogo que fizemos no Sesc, em Venda Nova.

Essa época, entre 1960 e 1969, quando saí de Pitangui para Belo Horizonte, no futebol era tudo diferente, tudo mais modesto. O único que não muda é a emoção do jogo, a alegria do contato com a bola, de um passe bem dado, umas embaixadinhas, uma matada na “caixa” e um chute certeiro, de trivela ou de peito de pé, longe do goleiro e a felicidade de um gol de placa, os companheiros te abraçando, a torcida gritando gol, gol, gol...

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Para matar saudades do “Sô Zé”, copiei este link do documentário “Tecendo Memórias”, Parte 1, feito em 2010, onde ele e a esposa, entre outros, dão um depoimento muito interessante:

https://www.youtube.com/watch?v=HRTKFlONFLg

William Santiago
Enviado por William Santiago em 20/06/2020
Reeditado em 20/06/2020
Código do texto: T6982809
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