A BRIOSA BRIGADA, COXILHOTES, LANÇANTES E O RIO CAMAQUÃ

– dedicado ao tenente Altair Sias da Silveira, com apreço.

Era o início do ano de 1970, meados de janeiro, justos dois meses do casório que viria a ocorrer em 21 de março. O então tenente queria conhecer o 5° distrito de Canguçu, especialmente a região de cerros povoados de gado, lançantes pedregosos, outros arenosos e várzeas agricultáveis, respectivamente: a do Alto da Cruz e a da Colônia da Armada. Nesta última, o ex-governador Leonel Brizola, havia uns 10 anos, instaurara um projeto arrojado. O jovem comandante de polícia militar queria observar in loco a instalação comunitária em tal gleba rural destinada à reforma agrária.

Ressalte-se que no Brasil de então vigiam os “anos de chumbo”, sob tutela da chamada Revolução de 64, e o governo federal havia cassado o prefeito eleito pelo povo em 1968 e Canguçu ganhara um interventor municipal por indicação de Walter Peracchi Barcelos, coronel da Brigada Militar, homem de confiança do movimento revolucionário, que fora instituído governador do Estado em setembro de 1966.

O pelotão da BM local até então, não possuía viatura própria e o que se pode encontrar foi a utilização do velho Ford 1934, posto à disposição do comando pelo soldado Silveira, a ser conduzido por Francisco Morales de Moura, o velho cabo Chico, que entendia um pouco de mecânica automotiva. Numa semana foi palmilhada a área territorial do vasto distrito interiorano, situado a cerca de 110 km da sede municipal até a várzea do Arroio Sapato, a fim de conhecer a realidade local: o caudaloso Rio Camaquã, adjacências de Amaral Ferrador, um vilarejo com o comércio de secos e molhados bem ativo. Sete dias de intensa atividade para os zeladores dos bens públicos e privados a serviço dos canguçuenses.

A Brigada tinha prestígio naqueles rincões interioranos que sofriam com o abigeato e outras ações delituosas. Foram 100 quilômetros de a cavalo (a ponto de o chefe perder a pele das coxas, nas virilhas), e mais uns duzentos e poucos km bordejando por estradas vicinais muito pedregosas, onde nas cercanias vagavam algumas lebres, tatus, e emas com seus desajeitados filhotes, junto aos aramados de algumas propriedades, e tratando de varar coxilhotes bordados de capões de mato, do Alto da Cruz aos lançantes agora arenosos, mais uns poucos banhados e charcos com lamaçal. E nestes se encontrava alguns javalis e muitas varas de porcos selvagens e outros animais de há muito fugidos das propriedades rurais e ali aquerenciados a que os povoeiros diziam serem muito bravios e os chamavam de porcos alçados do varjedo do Camaquã. Naqueles baixios da margem direita o rio era mais largo, uns 80 metros talvez, e havia bolsões d’água escuros, profundos, superfície em calmaria, onde os ribeirinhos diziam haver muitos peixes de variadas espécies e de bom tamanho, predominando os jundiás, surubis, grumatãs, piavas, carás, dourados, traíras e cascudos.

O impiedoso verão de janeiro corria solto e os verdes eram exuberantes nos baixios. Porém, um chasque recente e malfadado corria de boca em boca: caçadores e pescadores – sempre os implacáveis forasteiros – haviam explodido bananas de dinamite no rio e o curso d'água ficara coalhado de peixes mortos de variados tamanhos. Confirmado o fato a olhos vistos, a sensibilidade do grupo e a do jovem oficial foram afetadas e o espiritual dos vanguardeiros restou triste e acabrunhado, de onde veio o desejo e a também implacável vontade de prender a todos aqueles irresponsáveis meliantes que atacavam o equilíbrio ecológico e, por certo, naquele período sazonal de poucas colheitas, fariam faltar o alimento que vinha do rio para a mesa dos ribeirinhos pobres. Ademais, a colheita do ano anterior fora precária.

O registro memorial do então gestor da segurança local naqueles eitos de Canguçu dos anos 70, ainda tem muito viva a churrascada domingueira ocorrida na propriedade do pecuarista Rogério Matos, de onde se via os pendões dourados de arroz na várzea do Arroio Sapato. Também a imensa paciência do 2º sargento Marino Mulina da Costa, para com o tenente de 23 anos. O veterano graduado era o subcomandante do pelotão, oriundo do 1º Regimento de Polícia Rural Montada, sediado em Santa Maria da Boca do Monte. Boas lembranças, meu estimado obreiro da paz: sem ter havido percisão ou necessidade de dar um único tiro, porque os vândalos do Camaquã haviam se escafedidos sem deixar rastro.

Nesse ínterim, no lombo do velho matungo, o vigoroso Ford 1934, que pulava que nem um cabrito, ou nas sesteadas dos bivaques a campo, a admiração pela pequena e denodada tropa de soldados da paz cada dia mais e mais alentava o espírito do moço, a estas alturas com o corpo cozido pelo sol escaldante.

Enfim, atos, fatos, coisas e bichos de um tempo sem datação ou limite, porque singelas no andejar de trilhas pessoais, lúdicos territórios das amizades e dos afetos – que são o cadinho vivificador do amor ao convivente. Ainda bem que o Absoluto, pela graça de seus mistérios temporais relativos à finitude, permitiu que estivéssemos vivos para o devido registro. O meu coração saudoso ainda está lá fincado, falquejado pelo tempo, nos esteios, no pau de fogo da chama votiva, no santuário xucro da memória.

– Do livro inédito A BABA DAS VIVÊNCIAS, 1978/2020.

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