O VÍCIO DE CRIAR E A ABELHA

Acordo com vontade de escrever, ligo a TV e volto ao lugar comum dos três últimos meses. O sol de outono levantou com preguiça e o vento frio toma conta do ambiente. As notícias pouco diferem das dos últimos dias. A não ser as mais recentes nuances sobre a endêmica corrupção política no país e o alarmante número de mortos pela Covid-19, que se avolumam a cada dia. Parece-me que nada mais se alteia no cotidiano de novidades, além do exercício pandêmico do vírus que é impropriamente humano, porém esperneia em nós sem controle, naqueles nunca isotônicos cochichos do Grande Arquiteto do Universo pondo à prova a resiliência do humano ser. Num ato de protesto, levo o meu coração a um canto minúsculo do jardim e observo, ao orvalho matutino, duas abelhas colhendo o pólen sobre florinhas amarelas. Recolho-me ao ofício: o desafio de cumprir a condenação de observar, constatar, refletir e escrever. Sem mais nem menos, a sapeca gatinha Polyanna, chega, lépida e faceira, com seu andar de princesa à busca de elogios, miando de um jeito diferente que é quase um choramingar, sacode o rabinho peludo e se arruma desajeitadamente no meu colo, arranhando minhas pernas. Então, sem mais nem menos salta e sai correndo. Desligo a máquina que faz a recolha dos pensamentos e me perco em conjecturas do que ainda há por fazer na rotina da quarentena. Palavras desconexas se achegam e escorrem por entre os dedos e os olhos, a rigor, nem a veem. Tudo é míope: os códigos verbais procriam à revelia – desordenados – tal um castelo de cartas debruçadas ao vento, num acesso de fúria. Tudo, enfim, por afetiva entrega à estirpe humana e sua indecorosa saga de viver para transpassar um punhal no peito e aplacar as angústias do estar vivo e o enigmático não saber de nenhum dos porquês. Retorno ao pequeno jardim, volto-me à cena da colheita. E ela ainda é a mesma: a recolha do pólen. Confesso que senti vontade de ser a abelha – um anônimo inseto obreiro produtor de doçuras – que num longo beijo, em silêncio, bebe o sumo da flor, numa singeleza de fazer inveja ao gatinho de um mês que suga o seio materno.

– Do livro inédito A VERTENTE INSENSATA, 2017/20.

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