VOCÊ TEM MEDO DE TROVÕES?
Um simples tremor nas janelas e portas de madeira que servem a residência onde habito, devido à uma estrondosa trovoada, trouxe à tona lembranças do meu tempo de menino ainda criança. Enrolado à coberta, cerro os olhos e regresso às minhas experiências vividas ao lado do ruidoso trovão. Sei que de imaginar já me dá calafrios e o coração acelera. Também pudera, de forma inesperada ele lhe arrebata todo o ser com sua autoridade de fenômeno natural.
Era bem temido por mim nos tempos em que a janela do quarto da casinha lá no Pito, devido a uma antiga falta de ajuste no trinco, não selava de forma adequada o quarto do ambiente externo. Um blackout também me auxiliaria nos momentos de pavor frente aos clarões que antecediam a fúria certeira do trovão. Os raios brilhavam pelos vidros, o estalo se fazia alguns segundos depois e a coberta sempre era levada a toda extensão da cabeça que ficava escondida lá embaixo por um bom tempo. Lá debaixo o rosto suava, assim como todo o resto do corpo se molhava ouvindo a medonha festa celeste. Era o medo daquele barulho ainda não muito conhecido por mim.
Papai dizia que era São Pedro quem estava arrastando seus móveis para faxinar sua casa sobre as nuvens. Porém, nunca levei essa história mal contada a sério e constantemente aquele alvoroço me incomodava sem piedade. Eu imaginava que aquela ferocidade, aquele escarcéu entoado de segundos em segundos, eram rochas se despedaçando de grandes montanhas de pedra e saltitavam em direção à cidade. Era medonho estar cercado por toda aquela insanidade natural, eu imaginava naquele tempo.
Outro dia disseram que um estalão pela madrugada foi um raio que caiu sobre um relógio de energia lá no Alto do Querosene. Esse foi o estopim para que eu considerasse o trovão como a maior assombração da minha vida terrena. Nesta mesma noite, novamente os relâmpagos rasgavam céu inteiro, pareciam agitar uma rave celeste, mas os temidos estrondos me davam certeza que era um show de rock do mais pesado. A janela do quarto ainda era a mesma, a tranca não havia sido reparada, e eu cobria o crânio insistentemente na loucura monstruosa de que aqueles estampidos viessem a se transformar em algo grotesco, levando-me para algum lugar de certo não muito bom. Papai às vezes me acudia no quarto, tentava me acalmar, mas meu corpo mole, sempre frêmito, era adrenalina pura. A alma acredito que só não se desprendia de mim por compaixão ao meu sofrimento.
O calendário andou mais uma semana e no sábado pela manhã, o tempo úmido, porém frio, anunciava mais um dia de chuva com trovoadas. Eu estava admirando a paisagem pela janela da sala, quando de lá ainda existia uma visão de parte do centro da cidade, ao menos avistava-se o antigo “arranha céu” iunense de frente ao Banco do Brasil. Ainda hoje ele permanece erguido da mesma maneira, apenas em alvenaria e suportando a tradicional loja no seu térreo. Ali da janela, então, estendendo minha visada ao horizonte, observei que na altura da pedra da Tia Velha as nuvens acinzentadas começaram, paulatinamente, a cobrir o ondulado relevo cultivado por pastagem. O palco para a próxima festa estava montado e as trovoadas insanamente iniciaram a balbúrdia de terror pelas redondezas da cidade. A chuva, ao iniciar uma pancada voraz, trouxe consigo um raio que quase partiu o solo iunense. Imediatamente, retirei-me do campo de visão e fiquei retido em algum cômodo, escondido no interior da casa.
Depois da infância, veio a adolescência e a juventude sempre na companhia dos trovões de primavera, verão e início de outono, até que ao chegar do inverno eles hibernavam. Já não se encontrava tão suja a singela casinha de São Pedro lá no alto do céu. Há pouco tempo avistei raios caindo ao chão e num leve toque ao capim, ao descampado, aquela massa verde-clara transformou-se em pequenas chamas e logo apagaram-se devido à forte chuva de granizo e estupenda ventania que varriam a região. Neste dia, o carro parecia uma pipoqueira ambulante pelas estradas do interior do Espírito Santo. Foi uma aventura cheia de adrenalina, mas minha desenvoltura, frente ao “tribuzano”, parecia bem treinada, satisfatória.
Num passado não tão remoto, acompanhei uma tempestade até a universidade. Um fim de tarde deleitado às quedas incessantes de raio, nunca havia presenciado algo dessa magnitude. Os trovões, lógico, faziam seu escarcéu como nunca, o céu estava” Hardcore”, enquanto minha calça já era a própria chuva, ensopada pelas águas da primavera. Eu já estava habituado àquela sonoridade festiva medonha e um pouco desengonçada, às vezes. Já não era um inimigo a ser enfrentado. Era a voz absoluta da natureza anunciando um aguaceiro.
Lembrando-me destes contextos históricos e da minha evolução pessoal, abri feliz os olhos e tomei as trovoadas daquele dia de outubro como grande companheira de minha madrugada. Não tenho mais o que temer. Adormeci na sua barulhenta e não menos bela cantoria.
(JOÃO PAULO FERNANDES ZORZANELLI)