Posto de Observação
Uma das minhas grandes descobertas nessa quarentena foi o meu posto de observação. Eu nunca o havia notado mas ele sempre esteve, desde sempre, sempre aqui. Foi quase uma descoberta científica. Eu me senti como Galileu deve ter se sentido quando aperfeiçoou um instrumento holandês e passou a utilizá-lo para observar as estrelas. É isso! O meu posto de observação é dotado, não saberia dizer como, de uma espécie de telescópio da maravilhosa sensibilidade humana.
Pois daqui, do meu posto de observação, eu vejo pessoas acomodadas, mas vejo também pessoas incomodadas e pessoas com aquela inquietude que as levam a se reinventar. Ao se amoldar à situação atual, elas veem a hipocrisia inerente ao convívio social deixar de ter função e não haver saída que não seja a de ser fiel a si próprio.
Daqui do meu posto de observação eu vejo pessoas que enxergam uma excelente oportunidade para uma exortação e convocam uma tomada de decisão: resolver gostar da quarentena. Pois são inúmeras as possibilidades desta deliberação. São pessoas que veem que estamos todos aprendendo; que há um outro olhar nessa balança, que é justamente sobressair o cuidado com o outro e o novo convívio intensivo com os seus e com o próprio ser. (re)Aprendendo. E que, em um transcendente sentido, talvez estivéssemos precisando.
Daqui do meu posto de observação eu vejo pessoas, via de regra, desejarem que isso tudo passe logo e que a vida volte ao normal. Em algum momento, no entanto, emerge a compreensão que não se tem mais o antigo cotidiano banal. Não fugiremos à verdade em considerar, no entanto, que a vida não voltará ao normal, no sentido que o “normal” talvez tenha sido o problema que causou tudo isso. Melhor dizendo: o normal vai ser outro, não o que conhecemos até agora. A matemática, que desde Pitágoras já foi tão utilizada no intento de compreender o mundo, explica isso. Um sistema que está em regime permanente, ao ser submetido a alguma perturbação, acaba por estabilizar em um outro estado permanente, um outro normal. E vamos nos adaptando. Vejo essas pessoas questionando-se e refletindo que a expectativa da volta à vida normal pode não ser atendida. Quem disse que o mundo vai ser igual? “Mudança de paradigma é pouco”, dizem.
Daqui do meu posto de observação eu vejo pessoas que quando não sabem o que fazer apenas sentam-se e não fazem nada. E esvaziam a mente porque vão precisar dela. Eu vejo pessoas com a percepção de que o agora é tudo o que existe e com a compreensão de que é hora de simplificarmos as coisas o mais que pudermos; que estamos todos aqui agora e o que vem depois a gente vê depois.
Aqui, neste meu confortável posto de observação, de que não saio há meses e de onde consigo enxergar cada vez mais longe, eu constato com muita ponderação, com a ajuda de toda a tecnologia de comunicação pessoal que me permite o contato com os amigos e familiares, que vai, aos poucos, em velocidades diferentes para cada um, caindo o nível de impaciência com a falta das coisas comuns que constituíam o seu cotidiano pré-isolamento. De modo concomitante cresce a consciência de sua essência como um ser desse planeta. Aquilo que é reconhecer a coisa em nós – a única realidade – e não a coisa em si. A essência sutil de uma semente de um fruto partido que carrega a possibilidade de uma nova realidade traduzida em uma nova frondosa árvore frutífera. E enquanto eu não atinjo a essência sutilíssima vou telefonando para o delivery a pedir um sorvete de chocolate.
Aqui, desde a comodidade do meu posto de observação, eu vejo que há os que olham a situação como uma fase passageira, aguardando a solução científica para a retorno ao velho conhecido modo de viver, onde já se sabe bem como campear. Vejo, entretanto, que há os que enxergam e entendem a transformação, como a propedêutica de um movimento introdutório para um outro sistema, uma outra ordenação de elementos e princípios relacionados e conjugados entre si, para um outro corpo explicativo da realidade. Há os que pensam não se enganar naquilo que julgam saber com absoluta perfeição e há os que se questionam: o que somos? Qual o nosso verdadeiro lugar nessa grande cadeia do ser? E proclamam que cada um faz o melhor que pode e que isso é tudo.
Aqui, no lugar predileto do meu posto de observação, eu vejo pessoas que, num momento como esse, sentem dúvidas em relação a tudo o que está acontecendo com tanto reflexo nas suas vidas assim como com relação a tudo o que está sendo afirmado, dito, reafirmado e desdito, isto a todo instante, também com tanto reflexo em suas vidas. No entanto as vejo aproveitar toda a circunstância para recuperar o caminho humanista e utilizar-se da dúvida, não por outro objetivo senão a busca da verdade. E Nessa busca, não resta outra coisa senão duvidar, duvidar de tudo. A dúvida é o que se impõe como o único caminho possível: a dúvida voluntária, a dúvida como um ato de vontade a fim de conhecer o justo valor do que se duvida e de evitar ser enganado.
Daqui do meu posto de observação eu vejo com felicidade pessoas a dedicar mais estima às especulações intelectuais e a entender a importância fundamental a que não dar importância. Pessoas que não precisam mais se comparar com os outros, no mínimo porque o vírus não escolhe pela cor da camisa que usam ou pelo carro que possuem; que não veem mais porque confundir a sua própria pessoa com o personagem da sua atuação no teatro da vida. Pessoas que procuram afastar o mau amor de si mesmo para não fazer do isolamento um cativeiro. Pessoas que descobrem a revelação de tantas coisas que precisavam de latência para repousar e renascer. E que buscam aproveitar as horas para pensar-se a si mesmo como destino, como já disse Graciliano Ramos em “Memórias do Cárcere”.
Daqui, do meu posto de observação, eu vejo pessoas aproveitando as oportunidades que se têm em encontrar prazer nas mais fugazes tarefas caseiras e que são inestimavelmente preciosas. Desde um tranquilo café da manhã, o espanar dos livros, a melodia na caixa de som ou nos sonhos, tantas outras coisas, uma refeição com a melhor vista da janela ao firmamento, tudo acompanhado com um perfeito asseio e o vestir adequado ao seu agrado e deleite. E a clamar que podem lhes chamar de sonhadores, mas que vale a pena. Vejo essas pessoas retirando a palavra “desleixo” do seu dicionário.
Daqui, deste meu privilegiado posto de observação, de onde tudo vejo e tudo me encanta ou não, algo ali fora me leva a perguntar quais seriam os elementos que fundamentam a irracionalidade? A pessoa humana é um ser racional. Então não estamos a querer classificar pessoas com a falta da faculdade do raciocínio ou com o suposto fato de não serem dotadas de razão, pois as estaríamos colocando no mesmo patamar dos animais e das feras. Por óbvio não seria esse o sentido.
Daqui eu vejo que talvez queiramos admitir a ausência de razão no sentido da falta de lógica, de clareza de ideias, da clareza de pensamentos. Uma instância irracional traduzida por um ponto de vista, posição, ação, prática, uma “crença” sem o devido embasamento racional. Referimos, pois, ao absurdo, no sentido da característica daquilo que é contrário à sensatez e ao bom senso, da desconformidade com os ditames da razão. Desta forma, obviamente, podemos admitir que se tenha algum indivíduo – ou um conjunto deles – que tenha algum defeito na sua capacidade de raciocinar, por qualquer motivo, mesmo um motivo circunstancial (talvez contaminado), que seja.
Pois eu vejo que há um consenso científico – com elementos racionais bem definidos –, uma concordância ou uniformidade de opiniões da maioria dos membros de uma coletividade mundial sobre a maneira de se lidar com a crise pandêmica que estamos a sofrer. O que pode levar à negação pura e simples da situação fática que está bem à frente dos olhos de todos e com uma asseveração da ciência, de crédito profundo, e que está arduamente trabalhando no seu combate, sem nenhuma aparente conspiração mundial – convenhamos –, senão uma ausência do compreender e do ponderar? Senão uma irracionalidade humana?
Daqui, do meu posto de observação, eu vejo pessoas tomando para si a oportunidade ímpar de investigarem e questionarem as suas próprias convicções a respeito de nada menos caro do que as suas próprias vidas. Uma convicção é um pensamento que se aceita como verdade e praticamente todas as pessoas têm. Quando se está a passar o tempo de quarentena para se retornar à vida como era antes, alguns podem pensar que o antes faz parte de um passado que não volta. E, antes sim, propor-se a conceber um projeto de que elas e as coisas, suas coisas, podem ser melhores do que antes. Recompor aquilo que se vinha fazendo outrora e que não estava funcionando.
Vejo pessoas a pensar quais são as convicções que impedem o seu progresso e quais as que vão encorajar o movimento para a melhora de estado e qualidade. Velhas convicções podem, com muita frequência, serem pontos de vista limitados que não levam a um outro plano ainda desconhecido. As convicções devem ser analisadas, testadas, reformatadas e eventualmente validadas, não necessariamente descartadas. É hora de empreender uma nova missão, em que uma boa parte da velha bagagem não cabe mais na viagem. Hora de considerar o improvável e, quiçá, explorar o impossível. Este é o desafio, e tempo as pessoas têm. Por enquanto.
Bem aqui, no meu posto de observação, eu vejo que estamos adquirindo conhecimento em tal circunstância que a nossa inteligência e nossos sentidos têm tudo para não ser induzidos a erro. Porque fora das nossas reflexões, fora do nosso plano de ideias, o que vemos dos palácios do planalto central é um absurdo conjunto de dizer, desdizer, contradizer, dizer que não disse, esquecer que disse, e isto a todo momento. É uma preocupante exposição do pensamento errático de um homem.
Daqui do meu posto de observação vejo que, final e felizmente, submetendo-nos à inspiração de Jon Kabat-Zinn, temos a preciosa chance de aprender a tomar essa oportunidade que nos convida a envolver-nos, desde o fundo da alma, cada um no melhor da sua maneira, para nos aventurarmos no domínio do possível e do ainda não realizado. Aproveitemos.