EU E O BLACK BOY

Ele já foi um cão destemido, valente, um verdadeiro líder de matilha, perambulando pelas ruas da capital capixaba, especificamente nos arredores da Universidade Federal do Espírito Santo. Pelo dia e pela noite, com chuva, lua e sol era bem provável que seu gênio tempestuoso afugentasse pessoas que se aproximavam inocentes do seu território. Num fatídico dia, porém, devido a uma maldita armadilha que lhe acometeu uma das patas dianteiras, foi abandonado por seus companheiros de andanças e travessuras. Estando lá jogado a ermo, mesmo assim permanecia com seu genuíno temperamento de cão autoritário.

Apesar das dificuldades de comunicação e aproximação com aquele cão preto, uma equipe de voluntários conseguiu resgatar aquela fera. Esse grupo é empenhado em proporcionar carinho e cuidados a animais de rua que estão desemparados ou vulneráveis à covardia humana. O Black Boy, nome do dito cujo, recebeu tratamento de rei, passou por uma cirurgia delicada, estava novinho em folha, embora seus movimentos estivessem limitados por conta do acidente. Depois disso ele foi remanejado a um spa (que chique) para reabilitação e adestramento (acho que esqueceram dessa parte) e, em seguida, foi destinado para adoção.

A nossa nova velha casa em Iúna, pacato município da região do Caparaó capixaba, goza de um enorme quintal, perfeito para as mais variadas brincadeiras caninas. Grandes folhas de palmeira imperial, já tombadas pela velhice, formam extensos obstáculos sobre a grama, a serapilheira fofa do meu “pé de quase Mata Atlântica” fornece um inusitado espaço para rolar e arrastar o corpo e os muros talvez servissem para brincar de pula-pula. Sabíamos muito bem disso, pois lá já habitavam três agitadas amiguinhas de quatro patas que se deleitavam por aquele espaço, eram elas: Pretinha, Athena e Mel.

A partir dessas potencialidades, meu irmão e, na época, sua namorada, hoje esposa, anunciaram a proposta de ter um novo membro da família reinando no quintal de casa. Pelas primeiras imagens que vi daquele “rapaz” quadrúpede concluí que era um animal dócil, inofensivo e carinhoso. Certamente seria um membro muito querido na família, mas isso não importava tanto, contanto que se sentisse aqui como em seus tempos áureos. A recomendação, enfim, foi aceita por unanimidade e o despacho da fera seria acertado. Teríamos, enfim, um novo contrato vitalício chegando para o clube de casa.

O novo atleta do elenco, então, chegou em solo iunense e, em seu primeiro contato com o novo território, estranhou os elementos presentes, suspeitou de certas coisas, analisou detalhadamente o perímetro e conheceu suas companheiras que lhe deram as boas-vindas com cheiros pelo corpo todo. Era o ato de reconhecimento do novo integrante. Eu não presenciei estes momentos iniciais do recomeço de sua vida de ascensão e glórias em casa. Fui para Iúna apenas na próxima semana, ansioso para conhecer a nova contratação e lhe dar um forte abraço.

O próximo fim de semana chegou e fui respirar os ares iunenses, dar uma descansada na mente e no corpo. Como de praxe, a recepção em casa é sempre uma festa da cachorrada que pula, late de alegria, sacode o rabo freneticamente e nesta ocasião recebi também as boas-vindas do Black Boy que lascou uma bela mordida em minha mochila e retirou-se silencioso de perto com a sensação de primeira tarefa cumprida ao cumprimentar alguém estranho ao seu convívio. Ainda manco, possui grande agilidade e sua marca principal é ser um pouco anti-social e difícil de lidar. Fez desmoronar toda aquela expectativa inicial que eu tinha sobre ele.

No outro dia, já tendo percebido a personalidade daquela fera, retirei-me para a rua antes do seu despertar. Revi o charmoso rio Pardo, dessa vez com águas pouco caudalosas, persisti pela beira-rio até lá embaixo no centro da cidade. Munido pela extensa lista de compras que mamãe me entregou no dia anterior, retornei pela Avenida Getúlio Vargas em toda sua extensão, subi a impiedosa ladeira do Henrique Coutinho, encontrei a rua Ypiranga e iniciei a descida até o supermercado. Após realizar esses afazeres da manhã, retornei, munido por um mundo de sacolas nos braços, ao seio de minha casa, lá no início da rodovia que liga Iúna a Muniz Freire. Ao longo do caminho fui matutando alguma estratégia para driblar a agressividade do cão e pensei em utilizar a limitação de seus movimentos a meu favor. Abri o portão e, para selar nossa amizade, o Black Boy deixou cravada a imagem de um de seus vorazes dentes na parte de trás da minha perna esquerda. Não tive tempo nem de arriscar em colocar em prática meu audacioso plano. Fiquei de perna bamba como resposta a maior disponibilidade de adrenalina no organismo frente ao susto. Adorava latir com autoridade para o meu lado a fera, impedindo que eu saísse do seio de minha casa. Quase impossível conseguir uma amizade com o animal, que novamente tornou-se líder naquele meio. Líder até mesmo das pessoas.

Os dias foram passando e eu observando os passos daquele destemido canino, procurando um meio mais fácil de conseguir seu respeito e assim poder conquistá-lo e sermos grandes companheiros. As tentativas eram sempre em vão. Apenas na hora de comer ele se fazia de coitadinho e ia até minhas mãos para se alimentar. Porém, quando tentei passar carinhosamente uma das mãos sobre suas costas troncudas e sebosas ele esquivou-se com habilidade, permanecendo sempre alerta e com dúvidas ainda sobre minha pessoa. Será que eu era uma ameaça à vida dele?

Seu olhar de menino ousado, bravo e autoritário e a experiência de um senhor eram bastante notáveis ainda, como em sua velha e conhecida fase de soberania. Com o tempo ele foi se habituando à minha presença e pudemos nos aproximar com mais mansidão e logo pude oferecer meus carinhos, minha companhia para uma corrida juntos a qualquer canto, embora ele ainda seja um cão que prefere estar solitário, não entendo bem. O importante é que cuidamos com muito zelo daquele negão tentando proporcionar o máximo de felicidade e bem-estar à sua integridade animal.

Hoje ele é meu confidente e psicólogo. A varanda gelada nas noites iunenses é meu divã, onde repouso meu corpo e conto alguns detalhes da vida para este senhor que agora não sai muito da sua casinha.