CAVALO DE SANTA LUZIA
Delicio-me com um chocolate quente cremoso feito por minhas mãos de amador nesse mundo da culinária. Afasto a fumaça que se desenha ao redor do copo com um sopro calmo como uma brisa e resfrio aquela morenice. Dou uma leve bicada na minha bebida calórica e os sentidos da língua me transmitem a informação de que o escasso doce está no ponto. Sou um chocólatra, não tenho vergonha em assumir esse meu vício, essa minha gula muitas vezes desgovernada pelo cacau. Esse prazer de hoje pela manhã, emanado pela volúpia nebulosa de um quase inverno – já está gelado lá fora – traz vagamente lembranças dos achocolatados dias de Santa Luzia, sempre aos 13 de dezembro do calendário cristão.
Como mandava a tradição na imensa família de meu pai, no dia anterior ao deleite, a criançada era sempre incentivada pelos pais a preencher fartamente o conteúdo de pratos – qualquer tipo, sem preferência – com capim ou milho. A informação dada para satisfazer nossa inocência e ingenuidade era que Santa Luzia passava pelas madrugadas em todas as residências. Seu cavalo parrudo e faminto precisa se alimentar de forma voraz devido às andanças ininterruptas pelas estradas dimensionais, para tanto capim e milho já atendia às exigências do pacato equino. Como forma de agradecer, Santa Luzia recheava todos aqueles utensílios com os mais diversos chocolates do país (do mundo não, pois nunca ganhei uma barra de chocolate suíço). Em conclusão, os pais ganhavam a criançada pela boca. E que criança não gosta de um docinho, né?
Depois de alguns ciclos dessa deliciosa brincadeira, eu e meus irmãos formamos um audacioso plano na casinha cor de goiaba lá do Pito. Definimos as estratégias mais eficazes para o momento. Existia um quartinho que possuía uma pequena báscula com visão estratégica para a mesa da cozinha e naquela noite, anterior à hora do chocolate, testamos nossas habilidades aprendidas em algum filme de espionagem. Era um desejo ver a Santa Luzia e seu fiel cavalo realizando a façanha anual de deixar a criançada sorridente. Já era por volta de meia noite, nossos olhos repuxando de sono e desistimos da aventura rebelde enrolados na coberta. Dormimos. No outro dia o cacau já enfeitava nossos pratos sem qualquer vestígio de uma lambida ousada ou algum resíduo proveniente da mastigação dos milhos.
Acredito que uns dois anos se passaram. Estávamos em casa nova e eu nem tinha mais aquela curiosidade aflorada de desvendar os mistérios do mundo de Santa Luzia. Eu só queria saber dos chocolates. Meus olhos e boca eram voltados apenas para isso. Então, por um leve esquecimento da data desci até a cozinha pela madrugada, já início do alvorecer, para molhar a garganta com meio copo d’água. A luz da cozinha estava acesa e percebi, de longe, algum movimento, algum ruído naquele cômodo. Fui me aproximando e o cavalo de Santa Luzia ressurgiu como um tiro na minha cachola. Eu estava crente que dessa vez iria ver de fato a cena que tanto sonhava nesse dia de doçuras. Eu tinha certeza que agora não me escaparia a realização desse desejo. Subi o pequeno degrau da cozinha e lá estava papai guardando todo milho no mesmo recipiente tapperware do qual havíamos retirado para colocar nos pratos. E para completar a surpresa, lá estavam os chocolates espalhados pela mesa aguardando a simples organização do pai já perplexo. Só escutei em seguida “não conta para seus irmãos”.
Um simples chocolate quente cremoso me fez lembrar uma descoberta infantil inusitada no dia de Santa Luzia. Com a mesma inocência que nos ganhavam pela boca, acabei apanhando de “sopetão”, pelas rédeas invisíveis da imaginação, o verdadeiro personagem de nossa alegria.