LADAINHA FUZARCA

Parecia um ferrolho qualquer. Um tanto tímido, entumecido pela desolação do tempo, pela causticação da vida. Seus penduricalhos se aglomeravam, atônitos, nos vãos calados da minha voz. Calados não no sentido do silêncio, mas pela profusão de calos. Senti, então, um daqueles frios que embaralham os ossos, deixando-os tão bambos como um dente prestes a cair. Veio o choro sentido, do fundo do meu baú da saudade, arrefecendo as turbinas feito o primeiro gozo, a primeira ilusão. Nunca havia me sentido tão enferrujado como daquela vez. Tentei pedir ajuda, ou perdão, mas só vieram nacos de desdém. Sabia que a teria inteira pra mim naquele sertão desarmado, naquela lamacenta e defumada porção de poeira que jazia do nada. Treslouquei meus guizos, desatando de mim o sangue rabugento daquela fé robusta. Fiz o que tinha de ser feito. Arremessei os medos na distância dos céus. Destampei cada rosto que me desafiava, numa algazarra jagunçada, viril, bêbada. Estava envelhecendo aos cântaros, meus cabelos se esvaiam num motim generalizado. Entendia que aquele ferrolho se rebelava da sua casca, fugindo de mim como água que foge da nascente. Temia que o ferrolho adoecesse, legando seus percalços à uma farra idiota e fugaz, derramando verdades no meio do torpor untado de luz. Me assustava deparar com aquele ferrolho de peitos fartos e riso frouxo. Sabia que na calada das coisas, por mais que fossem altivas, deveria abandonar as louças sujas do meu querer-bem. Tinha certeza dos fardos, das fronhas encardidas que tanto guerreavam dentro do chão. Acreditava nos doentes e nas bruxas atônitas que serviam o banquete. Alardeava cada teco de saudade que ainda se suportava dentro daqueles confins. Mas, apesar de tudo, eram ferrolhos enternecidos, tripudiados pelas mãos trêmulas e cadentes da mãe que eu quis ter e quis ser. Mãe de mim mesmo, das minhas agonias sem rima, dos meus trôpegos sustos de festim. Herdava, incauto, os trapos que outrora serviram de lar. Fazia valer cada grito que me açoitara, cada descaso que ousei entreter, vestindo meias surradas que faziam minha alma feder como nunca fedeu. Mas o ferrolho insistia em sorrir. Seus ossos desalinhados traziam à tona bandeiras a meio-pau, dissecando solenemente um epitáfio otário, um descaso absoluto pelas algazarras que ocultava dentro dos meus reinos. Fui nessa sina bizarra até o fim dos sonhos, enfavelando as cantigas de roda que tanto surtaram os vinténs sem dono, sem ração. Mas por trás daquela saga de Rasputin ainda se ouviam assobios escrotos, apanhado de versos puídos que caíam da minha toca, da minha boca. Tive então o desejo de desarmar aqueles ferrolhos, buscando na sua face algum sentido para meus sonolentos suores. Mas nada veio daí. Por mais que vasculhasse os tantos penduricalhos, por mais que insistisse em flagrar essa ladainha fuzarca, aquele dominó de paixão não saía do lugar. Clamei por um corda que me tirasse daquele sufoco. Pedi alforria aos meus guizos que ainda resistiam ilesos. Cadê aqueles novelos de seda que tanto fizeram chorar? Cadê os parcos desejos que, na calada do trem, dissecaram meus pés até nada restarem deles? Nada ouvi de troco. Então fiz o quer tinha a fazer. Agarrei os ferrolhos pirracentos, lançando-os até onde a minha vista não mais os alcançava. E fui dormir, absolvido e a absurdamente feliz como nunca havia me sentido antes.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 27/05/2020
Reeditado em 27/05/2020
Código do texto: T6959443
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